quinta-feira, 31 de dezembro de 2020
Kate Bush e Emily Bronte
terça-feira, 29 de dezembro de 2020
Cólera e covid-19
Faz três dias que sinto dores no corpo. Estou em Manaus desde o dia 19 e achei que a "temporada de covid" chegaria pra mim a qualquer momento.
Acontece que curiosamente eu tive quase os mesmos sintomas no ano passado, exatamente na mesma data (pós-natal), quando estive na casa da Pati em Niterói. A grande diferença era que o motivo de ficar de cama com dores absurdas no corpo, foi uma garganta inflamada na presença do meu avó e alguns tios e tias.
Tentei me observar. Não perdi olfato nem paladar, como andam circulando que são os principais sintomas. Em compensação, muitas dores nas pernas, costas, braços, lombar, nuca. Nenhuma posição era confortável. A menos ruim era deitar de lado, sem travesseiro.
No terceiro dia, não dependia mais de novalgina nem antigripais. Decidimos que caso as dores piorassem, iria ao hospital e caso elas diminuíssem, iria tomar dorflex, em último caso. Simples assim, um consenso coletivo de tratamento caseiro contra um possível covid. Não recomendo, procure um médico. Isso aqui é uma plantação de abobrinhas.
Faz três dias também, que leio um texto de 1847, da Emily Bronte. Até a página 212 já morreram duas mulheres estranhas, incríveis e um casal de idosos, com todo respeito, irrelevantes. Aparentemente do nada e de febre. A princípio, segundo uma busca rápida, a Inglaterra teve um surto de cólera que matou milhares. Mas isso não está claro no livro, é só uma hipótese.
quarta-feira, 16 de dezembro de 2020
Macroeconomia e o pequeno príncipe
Praia mole
A praia mole não foi a primeira que conhecemos na ilha. Nesse dia, acordamos cedo, subimos uma ladeira infinita e chegamos. Até ali, nada demais: água e areia. A descrição no meu guia era divertida:
"A praia mole é famosa por suas ondas de nível internacional e é conhecida no mundo todo por suas festas, especialmente entre a comunidade gay e lésbica. A praia é absolutamente bela, assim como a maioria das pessoas que nada e surfa por lá. Fica cheia, mas é parte do charme."
Havia um arvoredo bonito e logo nas escadas, me deparei com um par de olhos sequestrados sem perceber. Segundo a pensadora contemporânea Carol, são os "olhares aprisionados". Foi tão rápido e profundo que mal pude perceber que estava recém saído do mar com o seu brinquedo embaixo de um dos braços. Era um conjunto de olhos, pele, cabelos pretos e água.
Quase sem fôlego, continuei descendo. Não me passou pela cabeça olhar para trás, é quase o mesmo sentimento com estrelas cadentes. Faça o pedido e agradeça por ter visto aquela belezura. Seguimos.
Era muito cedo, a praia estava vazia e logo avistei um deus marinho caminhando em nossa direção. Dessa vez foi a minha vez de ter o olhar sequestrado, aprisionado. Quase congelei de nervoso. Ele percebeu, sorriu, disse bom dia e seguiu. Duas estrelas cadentes só pela manhã. Que praia!
Segundo a narrativa local, ela tem esse nome pela areia ser mole, fofinha. Definitivamente: só os fofos sobrevivem.
Notei que estava cheio de peixes no mar e não na areia. Decidimos fincar território, ou espalhar a canga, onde houvesse a melhor visão do cardume, um espetáculo a céu aberto. Minha maldita mania de não colocar grau em óculos de sol. A areia estava vazia, o mar cheio. Mas não para bobagens, tratava-se de algo seríssimo: surfar. Pairou um silêncio profundo de alguns minutos entre os três corpos na areia. Estavam tomados pela euforia da recém alforria do confinamento forçado de pouco menos que dez meses.
Um dos corpos passou a observar que tipo de onda apetecia a entrada ou quais eram os movimentos necessários para levantar e equilibrar. Qual a sensação de deslizar... parecia muito gostoso, ninguém saía da água.
Entrei no mar: mente quieta, espinha ereta e o coração tranquilo.
O assunto era unânime: "A água está uma delícia, perceberam como as ondas estão incríveis? Hoje é o melhor dia para surfar".
Eu fiquei imaginando em que contexto eu teria esse tipo de diálogo, senão ali.
Continuei brincando na água, encarando as ondinhas e ondonas. Era delicioso acompanhar o movimento da água e saber que existia uma muralha humana depois da rebentação. Eram muitxs! Nada me aconteceria e eu poderia continuar dançando naquela baladinha imaginária de mil sensações. Para os iniciantes como eu, a água estava vazia. Tudo acontecia mais adiante.
Me afastei da praia sem querer de tão gostoso que estava. Avistei minha prima bem distante e na areia, parecia preocupada e me chamando. Sem entender, nadei e voltei. Passei mais de duas horas na água e não tinha percebido. A beleza, de fato, sequestra. <3
Não pensei em tubarões, confiei. Confiei na experiência que as ondas me proporcionavam e fui avançado na medida que achava que podia. Confiei também na quantidade de pessoas, de mulheres que estavam surfando, era lindo de ver. Ninguém era extraordinário por isso, ainda que fosse. Eram humanos tanto quanto eu, que, com um pouco de técnica corporal, poderia fazer o mesmo. Quem sabe?
terça-feira, 15 de dezembro de 2020
Pequeno mapa do tempo, Bel*
Joaquín Torres (1943) |
O medo anda por dentro do teu coração
Eu tenho medo de que chegue a hora
Em que eu precise entrar no avião
Eu tenho medo de abrir a porta
Que dá pro sertão da minha solidão
Apertar o botão: cidade morta
Placa torta indicando a contramão
Faca de ponta e meu punhal que corta
E o fantasma escondido no porão
Medo, medo. medo, medo, medo, medo
Eu tenho medo que Belo Horizonte
Eu tenho medo que Minas Gerais
Eu tenho medo que Natal, Vitória
Eu tenho medo Goiânia, Goiás
Eu tenho medo Salvador, Bahia
Eu tenho medo Belém, Belém do Pará
Eu tenho medo pai, filho, Espírito Santo, São Paulo
Eu tenho medo eu tenho C eu digo A
Eu tenho medo um Rio, um Porto Alegre, um Recife
Eu tenho medo Paraíba, medo Paranapá
Eu tenho medo Estrela do Norte, paixão, morte é certeza
Medo Fortaleza, medo Ceará
Medo, medo. medo, medo, medo, medo
Eu tenho medo e já aconteceu
Eu tenho medo e inda está por vir
Morre o meu medo e isto não é segredo
Eu mando buscar outro lá no Piauí
Medo, o meu boi morreu, o que será de mim?
Manda buscar outro, maninha, no Piauí
*Wendel tocou hoje, na live do instagram. :)
Viagem de avião
Tenho uma amiga que faz aniversário no dia 13 de dezembro. No meio de uma conversa sobre as possibilidades de nos encontrarmos para celebrar, ela disse que iria para Curitiba e de lá, poderíamos ir para Florianópolis.
Achei ótimo, poderia ir de ônibus.
De supetão, comprou duas passagens de avião ida e volta. Fiquei chocada e bem chateada... fazia quase quatro anos que eu não voava. Como ela podia fazer isso comigo? Meu protesto foi ficar em silêncio por um bom tempo e descontar tudo na terapia. Coitado do Daniel, e de mim também. Convidei minha prima pra ir junto, caso eu não conseguisse embarcar, ao menos ela teria uma companhia e não ficaria com tanta raiva de mim. Conseguimos que ela fosse no mesmo voo que eu.
Chegado o dia, 03 de dezembro, eu minha prima fomos ao aeroporto de Guarulhos. Estava um dia bem bonito. No trajeto de carro estava tudo bem, no saguão do aeroporto também, encontramos com a minha amiga na sala de embarque, nos abraçamos, estava tudo bem. Não mencionei nada sobre medo e ninguém me perguntou.
Quando levantamos para embarcar, comecei a chorar sorrindo. Achei vantagem estar de máscara, enxugava as lágrimas e disfarçava qualquer expressão minha. Nos abraçamos. Entrei e sentei na poltrona 15 corredor. Havia uma senhora e seu filho adolescente, o pai estava sentado a frente com uma criança.
Fiquei quieta, só chorava. Me sentia um bicho comestível indo para o abate. Fazia tempo que não entrava em uma aeronave, então comecei a reparar em tudo. Poltrona, mesinha presa atrás, no teto, nas janelas, daí o avião acelerou para subir. Fechei os olhos.
O curioso é que subitamente passeia a achar legal estar numa máquina tão bem feita e comecei a simpatizar com o progresso tecnológico que aquilo significava. Por via das dúvidas, tirei o tercinho de madeira que a mamãe comprou em Aparecida, apertei as bolinhas o máximo que pude e passei a rezar freneticamente. Fiquei pensando se a meditação teria sido mais eficaz, mas tive que decidir muito rápido, não deu tempo de refletir muito. Comecei a imaginar a quantidade de mensagens que eu ia enviar dizendo que voei e isso me acalmou.
Decolou.
Eu sei que precisava de alguns minutos para ele parar de fazer aquele barulho um pouco mais alto e meio que estabilizar no céu. Foi rápido, logo estabilizou e não era necessário ficar com os cintos de segurança. Pra mim não fazia a menor diferença, eu ficaria amarrada até o fim da viagem de qualquer maneira.
O avião pouco balançou. Como de praxe, eu fiquei rezando e olhando as horas no celular até faltar trinta minutos para a previsão de pouso. Reconheço pela alteração do som das turbinas (acho) e já sei quando está descendo. Daí eu começo a curtir a viagem, de verdade. Olho pela janela, admiro a paisagem, adoro as manobras do piloto, converso fácil com desconhecides, ainda q dessa vez tenha ficado bem calada.
Saindo do avião, agradeci a tripulação pelo ótimo voo e disse que estava com medo. O piloto tirou sarro de mim. Disse que era bancário e estava ali a passeio, achei grosseiro, mas percebi que era algo cultural e não pessoal. E de fato, tratava-se de uma brincadeira grosseira que eu não era obrigada a achar engraçado. Sugeriu que eu tirasse uma foto na cabine, que era importante para perder o medo, que aquilo seria uma espécie de ritual de passagem. Fiquei envergonhada, mas resolvi encarar o mico e torcer para que se tratasse de uma magia simpática.
Quando o avião pousou, me senti a Gal Gadot e comemorei trabalhando no aeroporto, comendo uma salada de frutas bem colorida e esperando minha amiga chegar. É difícil falar disso sem me sentir mergulhada em uma narrativa de superação ridícula. Não sei, as vezes acho que me falta repertório para entender algumas passagens da vida. Me parece algo mais próximo a uma travessia. Seja de ponte, de território ou de continente. Mas não sei de novo, talvez não seja algo tão próximo do geográfico... é outra coisa, sei lá.