quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Praia mole

A praia mole não foi a primeira que conhecemos na ilha. Nesse dia, acordamos cedo, subimos uma ladeira infinita e chegamos. Até ali, nada demais: água e areia. A descrição no meu guia era divertida:

"A praia mole é famosa por suas ondas de nível internacional e é conhecida no mundo todo por suas festas, especialmente entre a comunidade gay e lésbica. A praia é absolutamente bela, assim como a maioria das pessoas que nada e surfa por lá. Fica cheia, mas é parte do charme."

Havia um arvoredo bonito e logo nas escadas, me deparei com um par de olhos sequestrados sem perceber. Segundo a pensadora contemporânea Carol, são os "olhares aprisionados". Foi tão rápido e profundo que mal pude perceber que estava recém saído do mar com o seu brinquedo embaixo de um dos braços. Era um conjunto de olhos, pele, cabelos pretos e água.  

Quase sem fôlego, continuei descendo. Não me passou pela cabeça olhar para trás, é quase o mesmo sentimento com estrelas cadentes. Faça o pedido e agradeça por ter visto aquela belezura. Seguimos. 

Era muito cedo, a praia estava vazia e logo avistei um deus marinho caminhando em nossa direção. Dessa vez foi a minha vez de ter o olhar sequestrado, aprisionado. Quase congelei de nervoso. Ele percebeu, sorriu, disse bom dia e seguiu. Duas estrelas cadentes só pela manhã. Que praia! 

Segundo a narrativa local, ela tem esse nome pela areia ser mole, fofinha. Definitivamente: só os fofos sobrevivem. 

Notei que estava cheio de peixes no mar e não na areia. Decidimos fincar território, ou espalhar a canga, onde houvesse a melhor visão do cardume, um espetáculo a céu aberto. Minha maldita mania de não colocar grau em óculos de sol. A areia estava vazia, o mar cheio. Mas não para bobagens, tratava-se de algo seríssimo: surfar. Pairou um silêncio profundo de alguns minutos entre os três corpos na areia. Estavam tomados pela euforia da recém alforria do confinamento forçado de pouco menos que dez meses. 

Um dos corpos passou a observar que tipo de onda apetecia a entrada ou quais eram os movimentos necessários para levantar e equilibrar. Qual a sensação de deslizar... parecia muito gostoso, ninguém saía da água.  

Entrei no mar: mente quieta, espinha ereta e o coração tranquilo. 

O assunto era unânime: "A água está uma delícia, perceberam como as ondas estão incríveis? Hoje é o melhor dia para surfar". 

Eu fiquei imaginando em que contexto eu teria esse tipo de diálogo, senão ali. 

Continuei brincando na água, encarando as ondinhas e ondonas. Era delicioso acompanhar o movimento da água e saber que existia uma muralha humana depois da rebentação. Eram muitxs! Nada me aconteceria e eu poderia continuar dançando naquela baladinha imaginária de mil sensações. Para os iniciantes como eu, a água estava vazia. Tudo acontecia mais adiante. 

Me afastei da praia sem querer de tão gostoso que estava. Avistei minha prima bem distante e na areia, parecia preocupada e me chamando. Sem entender, nadei e voltei. Passei mais de duas horas na água e não tinha percebido. A beleza, de fato, sequestra. <3  

Não pensei em tubarões, confiei. Confiei na experiência que as ondas me proporcionavam e fui avançado na medida que achava que podia. Confiei também na quantidade de pessoas, de mulheres que estavam surfando, era lindo de ver. Ninguém era extraordinário por isso, ainda que fosse. Eram humanos tanto quanto eu, que, com um pouco de técnica corporal, poderia fazer o mesmo. Quem sabe?

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confiança en si mesmo en fluir
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