segunda-feira, 24 de maio de 2021

A menina deusa




Era uma manhã de 1994, quem lembrou foi a Tia Bia. 

Na época, ela tinha começado a namorar o filho da Carminha. Estávamos todas na casa da vovó Ana, talvez num fim de semana porque a Vivi estava lá. Um grito veio de fora: tem uma menina morta na rua violeta. 

Eu, minha imã, a Mara, Viviane, Fabiana e Silvana calçamos nossas sandálias de borracha e corremos azuladas, enfrentando o asfalto quente das ruas do Alvorada para vê-la. A morte era algo curioso, corriqueiro, mas não em série, como se fôssemos baratas borrifadas com veneno, sem ar. Disseram que Manaus foi um experimento para a suposta "imunidade de rebanho", coordenada pelo Governo Federal. Não vamos esquecer.   

As mortes podiam ser de "velhice", classificada por nós como uma morte sem graça. Não tínhamos a menor vontade de ver, a menos se fosse de algum amigo da vovó ou do vovô, daí íamos acompanha-la para tomar café e comer "bolacha de motor". Era quase uma obrigação social. O morto por assassinato causava um certo receio e até proibição dos pais de ir ver o defunto. Imaginava-se que naquele instante seu algoz iria aparecer para uma suposta chacina ou que os que estavam velando o de cujos, não eram flor que se cheire. No máximo, a vovó Ana aparecia na casa da mãe e a consolava alguns dias depois. 

Um outro tipo de morte, a acidental, dava o que falar... na maioria dos casos, "o caixão estava lacrado de tão feio que ficava". As de incêndio tinham muito mais prestígio, víamos os vestígios das cinzas, a marca de fumaça nas paredes, os pedaços de pau que tinham se transformado em carvão e alguns brinquedos e panelas que tinham ficado pretas, mas não tostadas totalmente. Era um frisson se aproximar do grupo e ouvir as histórias que causaram o pior. Passávamos dias explicando as versões mais mirabolantes que tínhamos ouvido, sempre aumentando um conto, a depender do tipo de ouvinte. Exagero... nunca! Descrição fiel do que tinha acontecido, "ouvimos os parentes", era um fato. Jurávamos de pé junto: foi sim! era sim! 

Mas o suicídio... esse sim era digno de plateia. 

Chegamos quase juntas, umas correram mais rápido que outras. Avistei a casa que ficava na esquina. Ela tinha janelas amplas, de madeira. Estava toda aberta. O telhado era de zinco com os pregos aparentes, reforçados com pedaços de borracha para que a chuva não entrasse pelos buraquinhos. Olhando de longe, pareciam mini cogumelos flutuando naquele mar prateado. As paredes externas não tinham reboco. Era uma espécie de tapete feito com quadradinhos laranjas, melhor, um bolo xadrez com recheio de cimento. Esse era o revestimento do pé da parede ao teto. A casa parecia ter dois cômodos. O quarto-sala e a cozinha. A Mara foi a primeira que entrou e a primeira que saiu. Estava assustada, seus olhos verdes estavam arregalados. Gritou várias vezes: "não entra que tá feio, a língua dela tá perto do pescoço". Pela descrição, parecia a versão da Kali, a deusa Hindu. 

Eu sempre fui medrosa, hoje tenho orgulho. Mas à época, me causava sérios problemas de socialização. De alguma maneira, nesse dia não tive medo. Parecia que não havia registro, na minha cabeça de menina, daquela situação. Logo, não conseguia associar a nada que me deixasse insegura. Portas e janelas abertas, até o tucupi de gente ao redor, incluindo crianças, adolescentes, adultos, idosos. Sol no talo. Devia ser umas nove ou dez da manhã. 

Reparei que a moça estava de pé, havia uma cama embaixo, talvez em uma tentativa remota da família confortá-la, pós morte. O lençol era claro e estava bagunçado.  Tinha a pele negra e os cabelos longos e ondulados até o ombro. Nenhuma gota de sangue. Me lembrou uma boneca nova, presa na caixa rosa pelo pescoço com aqueles arames brancos recém saídas da loja. O short curto e a camiseta de alça, marcavam seu corpo de moça. No auge dos meus onze ou doze anos, tudo que eu queria eram os seios e a bunda grande, iguais as mulheres que apareciam no Faustão e na banheira do Gugu. 

Ela não estava na caixa, quer dizer, no caixão. Tinha quatorze ou quinze anos. A debutante continuava pendurada ali, pelo pescoço, aos olhos de quem quisesse observar. 

As mãos rígidas estavam empunhadas, os braços faziam uns 90 graus. Parecia bater numa mesa imaginária de um jeito imponente, como quem exige, reivindica - finalmente - algo que não é dado. Não lembro dos olhos, da sua expressão, nem da língua, como a Mara descreveu na última vez que nos falamos ao telefone, pedindo para Clarinha - minha afilhada - se afastar, pois trava-se de conversa de adulto. A Vivi, contagiada com a narrativa sobre a moça quase 25 anos depois, lembrou que ela vestia camisola, melhor, um baby doll rosa. Acrescentou que a corda que estava amarrada no caibro de madeira da casa era azul, a mesma que usamos para aumentar o tamanho da rede.

Ninguém nos proibia de entrar, não tinha polícia e não lembro de nenhum parente chorando a morte dela. Dezenas de olhinhos assustados e curiosos faziam a vigília da moça suicida, estudando cada detalhe, matutando sobre os porquês. Porque? Porque? Em pouco tempo, descobrimos que a motivação havia sido causada pela dor do amor não correspondido. Ela havia escrito uma carta com caneta azul numa folha arrancada do caderno da escola.  

Não lembro quanto tempo passamos ali. 

Aquele bando de meninas pálidas, magrelas, netas e filhas da dona Ana e do seu Arlindo, voltou pra casa espalhando para o mundo o horror visto. O que foi aprendido ali?

De acordo com Émile Durkheim, um homem, há quatro tipos de suicídios: o egoísta, o altruísta, o anômico e o fatalista. Todos a partir das forças sociais que ele chamou de integração social e regulação moral. 

As duas classificações são difíceis de engolir: o quanto podemos estar integrados socialmente sem estarmos seriamente doentes? Controlar uma sociedade através de uma regulação moral me parece igualmente problemático se formos considerar que querem que nos comportem, especialmente mulheres, de maneira previsível e esperada. 

Na adolescência, meus pais resolveram assinar a revista Capricho para as três meninas da casa. Acho que uma tentativa de ficarmos "informadas", mas também que tivéssemos acesso a assuntos que talvez, tivessem dificuldade de conversar conosco: sexo e temperamento. 

Lembro que nessas revistas, havia vários testes e manuais de como não errar no primeiro encontro, e nos demais, caso existissem (ufa). Tudo era baseado em agradar aquele garoto, aquele homem. O pesadelo era que ele sumisse, desaparecesse, o famoso e mau utilizado recurso do "cancelamento". Outro dia falo um pouco mais sobre os manuais contemporâneos para mulheres disfarçados de literatura e canais informativos de relacionamento. 

Um comportamento desviante, no caso, um suicídio, é sinal de que alguns elementos do controle social não estão funcionando conforme o esperado ou previsto. O que aconteceu com ela?

Seguimos.

A vontade era que ela estivesse com um colar de crânios e uma cabeça na mão, de um outrem, como a Deusa Kali ou em uma das pinturas de Caravaggio.


Judite e Holofernes (1599)

Vez ou outra, essa moça aparece nos nossos pensamentos. Trocamos memórias, vamos montando um quebra cabeça sobre nossas impressões, falamos entre risos nervosos sobre nós, ela e as circunstâncias da morte. Não perguntamos de quem ela era filha, neta, tão pouco seu nome. Permaneceu anônima. Temos um desejo profundo e secreto de esquecê-la. 

Nesse dia, a Mara passou a noite agarrada na vovó Ana. Eu, a Vivi e a Lissinha passamos a noite grudadas, quase sem pregar o olho. Não fizemos nenhuma promessa. Dormimos, mas não sem pensar na nossa menina Deusa, vestida de rosa, que traz tanto mistério, euforia, força e terror.  

 



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