terça-feira, 19 de outubro de 2021

Estação ana rosa e o mistério das coisas

Canto XXXIX


O mistério das coisas, onde está ele
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio e que sabe a árvore
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as coisas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
 
Porque o único sentido oculto das coisas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as coisas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.
 
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: —
As coisas não têm significação: têm existência.
As coisas são o único sentido oculto das coisas.



s.d.
“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).
“O Guardador de Rebanhos”. 1ª publ. in Athena, nº 4. Lisboa: Jan. 1925.
  - 63.

São Paulo, 04 de outubro de 2021.

terça-feira, 21 de setembro de 2021

As franjas do mar e a linha azul

Ontem conheci uma mulher.

Logo de cara senti que seríamos amigas. Hoje senti mais forte. As relações sem esforço são impressionantes. Espero lembrar disso quando me sentir desconfortável com alguém. 

Para encontrá-la, precisei pegar o metrô e passar por dez estações da linha azul. Dá uns dezessete minutos. 

Na última estação (ou na primeira) fiquei na dúvida em qual saída sairia, acho que são três. Resolvi perguntar:


Estação Jabaquara, linha azul do metrô de SP (21.09.21)

De acordo com o endereço, eu deveria sair pela Av. Engenheiro Armando, dobrar a esquerda e pegar um ônibus. 

Saindo da estação, duas coisas mudaram a minha forma de pensar a cidade e algumas possibilidades de mobilidade. Tipo aquela ideia de "revelação" do Rubens Alves que eu já contei milhões de vezes pra todo mundo que eu conheço, inclusive por aqui... ou no outro. Acho que no outro. 

A primeira coisa foi a voz de um homem em pé, aos berros:

- Praia, praia, praia, sai agora! 

O céu estava azul, sol no talo sem nuvens, do jeito que eu gosto. Meus ouvidos foram tomados pelos gritos e meus olhos grudaram numa árvore linda, cor de rosa. No meio desse transe, um avião passou estridente, quase por cima das nossas cabeças. 

EU AMEI TUDO, TUDO MUDOU.

linha azul - metrô de são paulo
Linha azul do metrô

Senti uma vontade tão grande de viajar, me imaginei sentadinha naquela poltrona de avião, cheia de vontade de chegar em sabe-se lá onde. 

Enquanto esperava o ônibus, por dez minutos, passaram mais três gigantes tirando fino... que fluxo intenso! Imaginei que estaria próxima do aeroporto de Congonhas. Guarulhos certamente estaria do outro lado, quer dizer... haahaha deixa eu ver. (...) ACERTEI! rs

Fiquei pensando na resposta que o rapaz me deu na saída do metrô... cinquenta minutos. Eu estou à cinquenta minutos de distância do mar. 

Dá pra acreditar?

Infinitas possibilidades se aproximam. 

domingo, 19 de setembro de 2021

o brasil que deu certo, 34

"hay que caminar para conocer."

outro dia explico quem me disse essa frase. 

saí decidida a conhecer meu entorno, meu país. não pedi orientação de ninguém, nada. fui sentir o movimento, a cidade, o meu balanço.

continuei a caminhar entre aqueles prédios antigos. as ruas seguiam com lixo, cinza, até que um nome me chama atenção: arcadas. 

além do outro significado mais endurecido, diz respeito ao formato das janelas, um conjunto delas.

segui caminhando, atenta a qualquer movimento que me pedisse pra ficar.

prainha da praça, dizia. era gostosa a sugestão. é um clarão bem no meio daquele emaranhado de concreto armado sem muita relevância. fui corrigida: "aqui é a bolsa de valores de são paulo". 

ainda desconfio, mas ele disse que é. 

parei e comecei a ouvir os tambores. foi o primeiro batuque que ouvi depois de todos esses milhares de anos. 

foi lindo acompanhar aquela força, aquele som poderoso e imponente vindo do meio daqueles prédios sujos, abandonados, esquecidos, largados ali. poderia falar sobre os louros da "decadência", mas não vou. passado um tempo, não havia mais prédio algum, só a força das mãos, o couro esticado e os sons. os monumentos diminuíram de tamanho e houve uma combinação de corpos pouco comum naquele centro tão carregado de histórias mal contadas sobre desenvolvimento econômico, o famoso "sucesso sulista". 

são novas memórias, novas históricas, pensei. novas maneira de contar, talvez. 

eu cresci junto... e quanto mais perto, mais potente, mais forte. quanto poder. não por a caso, é com essa mesma frequência que os orixás descem à terra, é um convite. 

encontrei um lugar.  

viva. bem viva. 









quarta-feira, 15 de setembro de 2021

O ralo da pia


Ontem a pia da cozinha entupiu. 

Aquela rodinha pequena, um emaranhado de fios de aço que não deixa os restos de qualquer coisa passar, foi esquecida durante o tempo que habito por aqui. 

Não imaginei que seria tão grave.

Mandei essa foto para o grupo da família e meu pai me ligou quase imediatamente:

- Oi, filha. Está com problemas domésticos? (risos). Você vai precisar abrir o cano embaixo da pia e tirar o que tiver atrapalhando a água passar;

- Pai, aqueles ácidos, tipo diabo verde, não adianta? Vou precisar colocar a mão nisso? não quero.

- Vai, não tem jeito. 

A pia passou da manhã até o fim de tarde assim, com essa água parada, suja e com alguns restos de sabe-se lá o que boiando. Com o tempo quase sincronizado ao entupimento da pia, tive que ensaiar um pedido de desculpas. 

Antes tarde do que mais tarde.

A sensação de soco no estomago que nunca tomei, passou alguns dias me perseguindo. A garganta e o cano entalados marcaram a importância daquela peça simples, barata e tão fundamental: o ralo.

Assim que desliguei o telefone e ter sido premiada pelo maior vexame do mundo, minha mãe me ligou na sequencia para explicar como desentupir o cano. Não deu tempo de respirar nem processar a ressaca moral. 

- Filha, coloca uma bacia embaixo da pia para não ter risco de molhar tudo. Se você estiver com nojo (risos) calça as luvas de borracha. Assim que a água toda sair, joga na pia do banheiro e procura identificar o que pode estar ali dentro. Tira tudo. Ainda bem que estava no sifão, quando o entupimento é mais dentro do cano tem que quebrar a parede. Usa sempre a tela de proteção da pia. E nunca tentar empurrar resíduos dentro do cano. 

Quando a água inteira escorreu, guardei as panelas, fechei as portas, lavei a pia e algumas coisas que estavam por ali. Olhei pro ralo e chorei. 




sábado, 26 de junho de 2021

Encontro com Dorian Gray*

Dorian, homem lindo, encantador, daquele que faz a barriga doer à primeira vista. tudo parecia perfeito. A companhia, a risada, as ideias. Até que um dia eu vi o pedaço do quadro. Aquela parte feia que não revelamos a ninguém. Isso murchou a minha paixão. Meu encantamento se transformou em apreensão. Quase medo. Tinha medo de alguma agressividade contra mim. tinha medo de ser atacada e morrer nas suas mãos... logo suas mãos, tão belas. Que sempre me tocaram com ternura. 

* acabo de ler no insta da gau. 


segunda-feira, 7 de junho de 2021

Orientadoras

Minha primeira orientadora foi a minha mãe.

No início da faculdade nós rompemos por incompatibilidade de comportamento, pensamento. Nos distanciamos e desde então tenho procurado por ela por onde quer que eu vá. 

A primeira vez que busquei ajuda terapêutica foi devido a confusão de papéis que eu fiz entre a minha orientadora e a minha mãe. Ela me pediu para lavar a louça, digo, o relatório parcial da minha primeira iniciação científica. Eu fiz uma nota mental para as duas: não. 

Um problema grave, eu tinha bolsa CNPq, precisava resolver esse problema que poderia se tornar crime. 

Ao final, ela disse: você nunca será amada, nunca vai se casar, digo, você nunca irá se tornar uma pesquisadora. 

Hoje, em 2021, lendo e ouvindo Débora Diniz, me vejo novamente buscando uma mãe. 

"Se fortalecer para fazer o que você quiser. Mostrar a escrita, a metodologia. Um pequena subversão para importância das mulheres na ciência e na pesquisa."

Só eu?

Socorro.


palavras para não esquecer

esbugalhar

estribuchar

escangalhou

espetar

azular

rachar

esbagaçar

arredar

zimpar




segunda-feira, 24 de maio de 2021

A menina deusa




Era uma manhã de 1994, quem lembrou foi a Tia Bia. 

Na época, ela tinha começado a namorar o filho da Carminha. Estávamos todas na casa da vovó Ana, talvez num fim de semana porque a Vivi estava lá. Um grito veio de fora: tem uma menina morta na rua violeta. 

Eu, minha imã, a Mara, Viviane, Fabiana e Silvana calçamos nossas sandálias de borracha e corremos azuladas, enfrentando o asfalto quente das ruas do Alvorada para vê-la. A morte era algo curioso, corriqueiro, mas não em série, como se fôssemos baratas borrifadas com veneno, sem ar. Disseram que Manaus foi um experimento para a suposta "imunidade de rebanho", coordenada pelo Governo Federal. Não vamos esquecer.   

As mortes podiam ser de "velhice", classificada por nós como uma morte sem graça. Não tínhamos a menor vontade de ver, a menos se fosse de algum amigo da vovó ou do vovô, daí íamos acompanha-la para tomar café e comer "bolacha de motor". Era quase uma obrigação social. O morto por assassinato causava um certo receio e até proibição dos pais de ir ver o defunto. Imaginava-se que naquele instante seu algoz iria aparecer para uma suposta chacina ou que os que estavam velando o de cujos, não eram flor que se cheire. No máximo, a vovó Ana aparecia na casa da mãe e a consolava alguns dias depois. 

Um outro tipo de morte, a acidental, dava o que falar... na maioria dos casos, "o caixão estava lacrado de tão feio que ficava". As de incêndio tinham muito mais prestígio, víamos os vestígios das cinzas, a marca de fumaça nas paredes, os pedaços de pau que tinham se transformado em carvão e alguns brinquedos e panelas que tinham ficado pretas, mas não tostadas totalmente. Era um frisson se aproximar do grupo e ouvir as histórias que causaram o pior. Passávamos dias explicando as versões mais mirabolantes que tínhamos ouvido, sempre aumentando um conto, a depender do tipo de ouvinte. Exagero... nunca! Descrição fiel do que tinha acontecido, "ouvimos os parentes", era um fato. Jurávamos de pé junto: foi sim! era sim! 

Mas o suicídio... esse sim era digno de plateia. 

Chegamos quase juntas, umas correram mais rápido que outras. Avistei a casa que ficava na esquina. Ela tinha janelas amplas, de madeira. Estava toda aberta. O telhado era de zinco com os pregos aparentes, reforçados com pedaços de borracha para que a chuva não entrasse pelos buraquinhos. Olhando de longe, pareciam mini cogumelos flutuando naquele mar prateado. As paredes externas não tinham reboco. Era uma espécie de tapete feito com quadradinhos laranjas, melhor, um bolo xadrez com recheio de cimento. Esse era o revestimento do pé da parede ao teto. A casa parecia ter dois cômodos. O quarto-sala e a cozinha. A Mara foi a primeira que entrou e a primeira que saiu. Estava assustada, seus olhos verdes estavam arregalados. Gritou várias vezes: "não entra que tá feio, a língua dela tá perto do pescoço". Pela descrição, parecia a versão da Kali, a deusa Hindu. 

Eu sempre fui medrosa, hoje tenho orgulho. Mas à época, me causava sérios problemas de socialização. De alguma maneira, nesse dia não tive medo. Parecia que não havia registro, na minha cabeça de menina, daquela situação. Logo, não conseguia associar a nada que me deixasse insegura. Portas e janelas abertas, até o tucupi de gente ao redor, incluindo crianças, adolescentes, adultos, idosos. Sol no talo. Devia ser umas nove ou dez da manhã. 

Reparei que a moça estava de pé, havia uma cama embaixo, talvez em uma tentativa remota da família confortá-la, pós morte. O lençol era claro e estava bagunçado.  Tinha a pele negra e os cabelos longos e ondulados até o ombro. Nenhuma gota de sangue. Me lembrou uma boneca nova, presa na caixa rosa pelo pescoço com aqueles arames brancos recém saídas da loja. O short curto e a camiseta de alça, marcavam seu corpo de moça. No auge dos meus onze ou doze anos, tudo que eu queria eram os seios e a bunda grande, iguais as mulheres que apareciam no Faustão e na banheira do Gugu. 

Ela não estava na caixa, quer dizer, no caixão. Tinha quatorze ou quinze anos. A debutante continuava pendurada ali, pelo pescoço, aos olhos de quem quisesse observar. 

As mãos rígidas estavam empunhadas, os braços faziam uns 90 graus. Parecia bater numa mesa imaginária de um jeito imponente, como quem exige, reivindica - finalmente - algo que não é dado. Não lembro dos olhos, da sua expressão, nem da língua, como a Mara descreveu na última vez que nos falamos ao telefone, pedindo para Clarinha - minha afilhada - se afastar, pois trava-se de conversa de adulto. A Vivi, contagiada com a narrativa sobre a moça quase 25 anos depois, lembrou que ela vestia camisola, melhor, um baby doll rosa. Acrescentou que a corda que estava amarrada no caibro de madeira da casa era azul, a mesma que usamos para aumentar o tamanho da rede.

Ninguém nos proibia de entrar, não tinha polícia e não lembro de nenhum parente chorando a morte dela. Dezenas de olhinhos assustados e curiosos faziam a vigília da moça suicida, estudando cada detalhe, matutando sobre os porquês. Porque? Porque? Em pouco tempo, descobrimos que a motivação havia sido causada pela dor do amor não correspondido. Ela havia escrito uma carta com caneta azul numa folha arrancada do caderno da escola.  

Não lembro quanto tempo passamos ali. 

Aquele bando de meninas pálidas, magrelas, netas e filhas da dona Ana e do seu Arlindo, voltou pra casa espalhando para o mundo o horror visto. O que foi aprendido ali?

De acordo com Émile Durkheim, um homem, há quatro tipos de suicídios: o egoísta, o altruísta, o anômico e o fatalista. Todos a partir das forças sociais que ele chamou de integração social e regulação moral. 

As duas classificações são difíceis de engolir: o quanto podemos estar integrados socialmente sem estarmos seriamente doentes? Controlar uma sociedade através de uma regulação moral me parece igualmente problemático se formos considerar que querem que nos comportem, especialmente mulheres, de maneira previsível e esperada. 

Na adolescência, meus pais resolveram assinar a revista Capricho para as três meninas da casa. Acho que uma tentativa de ficarmos "informadas", mas também que tivéssemos acesso a assuntos que talvez, tivessem dificuldade de conversar conosco: sexo e temperamento. 

Lembro que nessas revistas, havia vários testes e manuais de como não errar no primeiro encontro, e nos demais, caso existissem (ufa). Tudo era baseado em agradar aquele garoto, aquele homem. O pesadelo era que ele sumisse, desaparecesse, o famoso e mau utilizado recurso do "cancelamento". Outro dia falo um pouco mais sobre os manuais contemporâneos para mulheres disfarçados de literatura e canais informativos de relacionamento. 

Um comportamento desviante, no caso, um suicídio, é sinal de que alguns elementos do controle social não estão funcionando conforme o esperado ou previsto. O que aconteceu com ela?

Seguimos.

A vontade era que ela estivesse com um colar de crânios e uma cabeça na mão, de um outrem, como a Deusa Kali ou em uma das pinturas de Caravaggio.


Judite e Holofernes (1599)

Vez ou outra, essa moça aparece nos nossos pensamentos. Trocamos memórias, vamos montando um quebra cabeça sobre nossas impressões, falamos entre risos nervosos sobre nós, ela e as circunstâncias da morte. Não perguntamos de quem ela era filha, neta, tão pouco seu nome. Permaneceu anônima. Temos um desejo profundo e secreto de esquecê-la. 

Nesse dia, a Mara passou a noite agarrada na vovó Ana. Eu, a Vivi e a Lissinha passamos a noite grudadas, quase sem pregar o olho. Não fizemos nenhuma promessa. Dormimos, mas não sem pensar na nossa menina Deusa, vestida de rosa, que traz tanto mistério, euforia, força e terror.  

 



sábado, 13 de março de 2021

errante navegante

Koketit 


"Posso ser um comunicador errante", ele disse. 


Para a astrologia, o planeta vênus é o representante simbólico da nossa forma de amar. Meu ascendente é em virgem, minha vênus também. Há muitos anos atrás, um amigo perguntou sobre a vênus, eu não tinha a menor ideia. Rapidamente, fizemos um mapa astral na internet. Ele pegou um livro de muitas páginas, leu sobre o significado e recebi um olhar de consternação que nunca vou esquecer. Era quase um suplício ter a vênus justamente em virgem. Não entendi nada, mas fiquei com aquele carimbo marcado com ferro quente bem no meio do meu coração. Talvez ele não saiba, se depender de mim, nunca vai saber, mas eu fui tomada por uma tristeza tão grande e me convenci que estava destinada a nunca amar e ser amada por ninguém devido essa maldição dos astros que tinha acertado logo a mim. 


Nas últimas semanas, de maneira recorrente, perguntam se estou bem. 

Respondo com toda sinceridade do mundo: sim, estou. 

Na sequência, ouço o seguinte: como é possível? pandemia, isolamento social, lockdown, 2.152 mortos por dia, bolsonaro, pazuello, falta de leitos, colapso, falta de oxigênio

Vou explicar.

Eu acabei de chegar do holocausto em Manaus. Minha irmã, um pouco antes do oxigênio acabar nos hospitais, teve que ser operada as pressas, ela retirou o apêndice e ficou de resguardo por algumas semanas. As crianças precisam comer, os idosos também. Além disso, os vivos precisam ser consolados pelas perdas dos seus mortos e doentes recém infectados. Minha mãe faz esse papel. 

Cresci entre agricultoras, parteiras, enfermeiras de guerras, desenhistas, cozinheiras de mutirões. Sou a primogênita de três mulheres e minhas antecessoras, foram e são matriarcas. Um ponto importante é a afirmação que uma criança é responsabilidade de um grupo, de um coletivo, de uma comunidade. Nunca, apenas de um casal ou uma mulher. É humanamente impossível. Destaco isso, porque eu não seria quem sou, sem a minha tia-madrinha Ledina, tia Rama e a (tia) Pati, todas irmãs da minha mãe. É nesse imperativo, nessa busca por excelência no saber fazer, nesse caldeirão de mulheres, que torna-se pessoa, torna-se humana.

Se eu digo que não estou bem, que estou com medo, que é perigoso, que eu corro riscos, que estou deprimida, que me sinto fraca, que não tenho mais forças, que estou cansada, teria uma torcida para me acolher e proteger, não sairia de casa, não teria feito e visto metade das coisas que já fiz e vi na vida. Na verdade, teria feito, mas só eu sei o desgaste emocional que isso me causaria. Para ser uma mulher forte, nesta família, é necessário furar essa barreira de proteção inabalável. É curiosa essa contradição.  Minha avó era forte, minhas tias são fortes, minha mãe é forte, eu sou forte. Mas não somos, ou somos? o que é força? não sei. Sentir e chorar são os verbos favoritos desta família.  Destaco aqui, uma força em agir, um poder de ação, no prover, no saber-fazer, na verdade. E isso se estende, imagino eu, a uma condição da mulher, ao menos neste microcosmo que descrevo. 

O que são os meus hiatos, então? resistência a tudo isso que falei e não concordo mais? segundo os resultados dos meus vestígios arqueológicos, vulgo terapia, é uma forma de entender, contemplar o que vivo, sinto, experimento. Achei bonito, isso também sou eu.  

Seguimos.

De acordo com Silvia Federici, autora do "Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva"*, a reprodução da vida e a força de trabalho da mulher foi negligenciada pelo Estado. Em linhas bem gerais, o ponto de vista dos não assalariados - que trabalham nas cozinhas, nos campos, nas plantações, cuidadora de crianças e idosos fora de relações contratuais, cuja exploração foi naturalizada, é creditada uma inferioridade natural. 

Silvia, já adianto minhas desculpas em te citar desse jeito porco.

*acabo de lembrar que preciso devolver o livro da Mari.

Este violência-negligencia estatal pouco importa, neste caso, para as mulheres da minha família. Há um certo prestígio, hierarquia e ordenamento nestes saberes-fazeres que tecem uma sociabilidade cotidiana que eu demorei para entender. Circular nesta mini sociedade, nesta cosmologia, nesta aldeia de mulheres que foi meu lar durante toda a minha vida,  é se colocar neste fluxo de fazeres. É importante que seja à sua maneira, com uma certa distinção entre as demais, mas com a incorporação do saber anterior. Trata-se de um reconhecimento real. É necessário acolher, acatar, reverenciar, creditar o poder da bruxa que veio antes de você, se não, nada feito. 

Além disso, como bem explicou a mãe Darabi de Itabuna, meu orixá (cabeça) é Oxaguian, filho de Oxalufan. É conhecido, também, por ser o Oxalá jovem. De acordo com Pierre Verger, "é um orixá do dinamismo e movimento construtivo, da cultura material. Seu domínio são as lutas diárias por sustento, trabalho e a paz. Oxaguian incentiva a superação e o provimento. Nunca entra numa batalha para perder, sempre ganhando suas lutas." 

Dito isso, além dos astros e da bela mitologia yorubá, tenho a genética, a ancestralidade e o contexto social em que elas e eu crescemos. Posso estar falando uma grandíssima abobrinha, mas eu me sinto desta maneira. Sei também o peso que foi e é nos apresentar assim. Sim, bancamos. 

"há pessoas que vão tomar banho e ficam chorando copiosamente embaixo do chuveiro, gosto de saber de situações assim, não me sinto tão miserável", ele disse. 

A palavra "miserável" me chegou como uma bordoada. Admitir uma fragilidade, uma dor, um não saber, é permitir que o outro te veja vulnerável para que você se permita ser vulnerável também. Eu não aprendi isso em lugar nenhum. O que eu faço com as mulheres da minha vida? E agora?

Sobrou eu e o silêncio. 

Dizem que há uma beleza neste movimento. Adianto aqui que não consigo nem começar uma explicação. Qual o poder imbricado nessa delicada narrativa-diálogo? O que há em compartilhar algo que experimentamos como incerto, risco ou exposição se isso nos deixa ansiosos e com medo? Sigo curiosa.

O que faço com esta mulher da guerra que - também - sou? O fantasma da vênus em virgem me atormentou durante toda essa conversa. Fiquei ali, atônita, muda. A errante ali, era todinha eu, sem saber o que fazer com a minha espada. Aquela praga rogada pelos astros, sina dos marcados com ferro e fogo que estavam fadados a serem descobertos como almas sem coração, insensíveis, entregues ao fluxo da ação, do provimento, defesa e, caso necessário, violência. Pra piorar, tenho quatro planetas em libra, incluindo meu sol, e quatro planetas em sagitário. Em resumo, para não iniciados, significa que na mais completa decadência, eu me sinto absurdamente mais bonita, mais atraente e devidamente munida de um plano de fuga infalível e impecável. As minhas melhores viagens e fotos - risos, foram nos períodos de maior miséria humana. É um inferno delirante ou talvez meus anticorpos astrológicos para que eu não me sinta tão desgraçada assim.

Aos desavisados, poderia parecer uma mera positividade tóxica, alienação, arrogância, ou um simples coração gelado. Não é, mas tudo bem se for. Minha lua em peixes me persegue. Ouço uma música e subitamente saio do eixo, é desesperador quando tenho um prazo e ela fica ali, me espreitando feito uma ladra. Leio um poema, fico obcecada por dias. Lembro de um diálogo bonito e fico louca para registrar na agenda ou refletir até secar todas as possibilidades de combinações de palavras e significados. Falo com meu sobrinho de seis anos e fico horas chorosa de saudade. Tem dias que todas as dores e euforias do mundo estão dentro de mim.

Especialmente nos momentos de desespero, tomo um banho, bebo água, faço uma máscara de argila e planejo meu dia seguinte na agenda. É assim. 


Ao que interessa: como acolher um lindo miserável com lua em leão de fogo e vênus em câncer. Resolvo fazer um bolo ouvindo música. Eis que as resposta surge em forma de redenção e livramento:


Terra, Caetano Veloso. 

Eu nunca imaginei que existiria uma música de xaveco-homenagem para as mulheres de terra. Muito menos que elas eram passíveis de causar paixões. As de ar, sim. As de terra, não. Anos de sofrimento a fio, sem um dia de descanso e consolo foram dissipados com Terra. 

"Terra para o pé firmeza, terra para as mãos carícia"

Caetano acertou. 

Observação importante: Theodor Adorno em "as estrelas descem a terra", faz uma crítica corrosiva ao expor como o capitalismo tardio tem força nas narrativas sobre os astros. A minha cara de pau não tem limites ao juntar essa torcida organizada para fundamentar uma singela paquera de confinamento. Este célebre autor não foi mencionado no texto, pois poderia me desmoralizar pelo encantamento, talvez, indevido. Agradeço, porém, dispenso. 

Adorno, você será ignorado.  

sábado, 2 de janeiro de 2021

Distinção x acumulação de capital

Hoje fui fazer exame de sangue para saber se estava com covid ou não. O nome do exame era "Coronavírus - covid 19, IgG e IgM". Em ambos, deu "não reagente" e isso significava que eu não havia pegado em nenhum momento do ano passado nem agora. Ainda que eu tenha apresentado quase todos os sintomas. O fato, é que aproveitei o "passeio" para observar Manaus.

Fiquei pensando na quantidade de significados que eu depositava em algumas partes da cidade, em alguns bairros, estabelecimentos e isso inclui objetos, roupas, sapatos que hoje vejo como pura bobagem. Fiquei pensando no que eu poderia ter economizado e na importância da experiência, do deslocamento, nas muitas linguagens que ela te oferece. 

Algumas verdades são ocasionais, eu sei. Mas o fato é que hoje tive esta revelação: acumular o máximo que puder. Tenho planos. 



sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Amazônia: caio do céu, broto do chão

Tem algo bem interessante que eu quero entender com mais profundidade e vou me utilizar disso aqui.

Estou em Manaus e as vezes tenho a impressão que é como seu eu tivesse nascido no Hawaii, na Índia ou na Indonésia, em Bali, sei lá. Algo bem quisto entre turistas de natureza, cultura e espiritualidades no geral. Acontece que aqui estão enterrados meus bisavós, avós e amigos. Aqui crescem meus sobrinhos, envelhecem meus pais. Aqui eu brinquei, caí, namorei, chorei, estudei, senti raiva, briguei. Daqui eu parti e voltei. Não é uma visita ou uma experiência xamânica com todo o exotismo que isso pode conter. 

Eu não cresci na fumaça, esfolando joelho no concreto sujo, bebendo água de rio podre e com o sangue cheio de antibiótico. Eu tomei banho em igarapé, curei garganta inflamada com andiroba, dona Teo rezou na minha cabeça quando eu era criança, cresci no meio da vitória régia, entre pescadores, ribeirinhos, agricultores, comendo peixes gigantes e doces de cupuaçu como se fosse a coisa mais natural do mundo. 

Sinto muito, isso faz muita diferença. Cada um que lute com sua trajetória, essa é a minha. 

A princípio, identifico duas coisas interessantes: minha memória afetiva e essa potência que a Amazônia, de fato, é. Ainda que eu torça o nariz para todo esse exotismo irritante, tem algo que eu não consigo explicar, algo que me escapa, pela falta de estranhamento necessário, talvez. De fato, não sou estranha a esse lugar. Eu me reconheço inteiro nele, sou parte desta geografia. Me parece que não há tantos limites entre memórias, diversidades e sensações. Caio do céu, broto do chão. Sigo especulando.

Desde quando o avião se posicionou e eu avistei o primeiro braço de rio, comecei a chorar de emoção. Mas não era o desenho do rio, não era a floresta, não era o céu... ou era

Esse olhar distanciado deve me servir pra algo. É isso que eu quero descobrir. 

Assim que o avião aterrissou, levantei da poltrona e disse brincando para minhas duas companheiras de viagem:

- Preciso sair daqui agora, preciso correr.

Uma delas me respondeu:

- Não, agora você é civilizada, não é do mato. Não vai sair correndo. 

Respondi chorando e sorrindo, bem surpresa com a minha resposta atrevida, emocionada e sincera:

- Eu não sou civilizada, sou d(o) mato. 

Quando alcancei a porta do avião, saí como uma flecha. Corri, literalmente, numa emoção que nem sei explicar. Agradeci a todos os seres por não ter despachado nada! 

Num primeiro momento, pouco me importou as comidas, a paisagem, o rio, a floresta: o que eu queria estava ali na minha frente, aquele bloco de carnaval me esperando no aeroporto com todos os braços do mundo, meu mundo. 




Baleias

Estava na praia do Campeche, sozinha, quando uma moça com duas crianças se aproximou e perguntou se eu conhecia as praias da Armação e Matadeiro. Respondi que não. Eu poderia falar sobre as duas praias,  mas que confesso não quero. Além de tudo, achei  macabro saber que ali era o lugar que matavam baleias. 



Sem saber  ao certo como aconteciam as carnificinas, fiquei imaginando esqueletos enormes sendo retalhados a céu aberto com dezenas de homenzinhos, urubus e moscas sobre eles. Pela foto, minha imaginação não estava tão errada assim. 

Em 2018, fiquei sabendo que baleias tinham aparecido na praia de Moçambique. Fiquei chocada! Nem sabia que elas nadavam em costas brasileiras... deve ter sido a água gelada que atraiu as bichinhas, pensei. 

De qualquer maneira, pensar em baleias me remetia ao meu livro não acabado de Moby Dick. Sem pesar, sigo viajando. 

Após ondas épicas de quase dois metros, o barqueiro de lagoinha do leste nos disse que uma baleia havia aparecido exatamente naquela praia no dia anterior! Novamente associei ao mar gelado... o sol estava no talo e a água incrivelmente fria. Dessa vez, não reclamei, fiquei um bom tempo ali... achei bem gostoso e até curativo. Elas sabem das coisas. Naquele mesmo dia, fomos a praia de Moçambique. Estava ansiosa, era a minha favorita do guia. Dizia que havia uma floresta de pinheiros e que poderíamos caminhar ao longo. Minha esperança secreta era ver uma baleia por lá, achei tudo muito surreal para umas férias tropicais como aquela. 

Nem consigo dizer "infelizmente" porque a praia era tão linda, tinha tanto siri, pássaros e tanto pescador que só o fato de imaginá-las por ali, nadando escondidinhas, me deixou satisfeita. 

Em Manaus, sonhei com uma.

Eu estava na água e fora dela, havia um perna de pau com um jeito engraçado sobre a baleia. Ele tentava se equilibrar enquanto ela fazia seu nado por baixo da água. Não era muito grande, nem parecia um filhote. Ambos estavam bem confortáveis ali, parecia divertido. Eu observava tudo, a água clarinha me ajudava a enxerga-los. 

Acordei. 

Hoje, deitada com a cabeça no colo do papai, vimos um programa de vistas aéreas sobre cidades (sim, isso existe) na tv. Era o estado de Massachusetts. Das informações relevantes que agrupei nesta noite quente, foi que Jacqueline Kennedy segurou um pedaço do cérebro do seu marido no dia do assassinato (essa informação foi do meu interlocutor) um outro dado relevante, dessa vez do programa, foi que o Estado exportava óleo de baleia para o mundo inteiro. Era utilizado como combustível, até rolar um super incêndio na região. Parece que há uma igreja, mencionada inclusive por Herman Melville, que os pescadores rezavam antes de irem a caça. Era algo extremamente perigoso. 

Sem saber como acabar esse texto, digo fim. 



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