quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Sobre etnocentrismo e outras descobertas

Este texto, diz respeito a descobertas interessantes ao longo da vida de uma menina.


Episódio I: tipos humanos

No auge de minha sétima série, surgiu no colégio uma menina que se chamava Silvya Cristina. Era seu "nome de guerra". Silvynha era uma menina comum, sob o meu olhar imaturo, até o momento em que a professora de português, Josana, nos questionou sobre nossas férias. De um por um, íamos dizendo o que tínhamos feito sob o olhar atento da professora e dos demais colegas.

- Joguei video game;
- Aprendi a fazer bolo;
- Fui à casa da minha avó;
- Brinquei na rua com meus amigos;
- Andei no Iate da minha família e depois brinquei um pouco de jet ski  no rio Negro (CRISTINA, Silvya).

Neste exato momento, Silvya Cristina, filha do coronel, indicava algo de diferente em relação aos demais que a ouviam com atenção e interesse. Haviam duas palavras que não sairiam de nossas cabeças: iate e jet ski.

Aposto que NINGUÉM sabia quanto custava um desses dois itens, mas todos tinham certeza de algo: era coisa de "gente rica". Houve um silêncio naquele momento e todos passaram a cochichar que aquilo era um comportamento de gente exibida, que ela era fresca, patricinha e que não víamos a hora dela nos convidar pra andar naquele "barco lindo", bem diferente dos recreios da cidade de Manaus, considerados inseguros, sujos, inóspitos.

Silvya Cristina virou sinônimo de distinção.

Para o azar dos invejosos, Silvya Cristina pouco se importava com a opinião alheia e saia desfilando com todo seu charme naquela instituição careta do exército. Quando estávamos para terminar o segundo ano do segundo grau, anunciou que estudaria em uma escola norte americana, que sentiria muitas saudades de todos nós, mas que mandaria cartas e nos contaria todas as novidades.

A primeira foto que nos enviou, estava numa quadra de esportes, uniformizada, entre os adolescentes brancos, louros e altos que se tornaram seus colegas durante um ano. Ao voltar, nos explicou que lá as garotas não se importavam com roupas caras ou com o formato do corpo ou o com o cabelo "arrumado" (lê-se: liso), tal como no Brasil, segundo ela, o mais importante era a pele, a maquiagem... e que portanto, gastou todo o dinheiro que seu pai a enviava com produtos da marca Maybelline. O ritual era acordar bem cedo, se maquiar e correr para sala de aula, ela explicou que sofreu um pouco de preconceito até entender que era assim.

*

Com o relato sobre a amazonense "exibida" da década de 90, Silvya Cristina, percebemos, pela primeira vez, a distinção clara entre ricos e pobres, enquanto uma classificação de tipos humanos. Nas aulas de sociologia ministradas pelo Tenente Batatinha com o livro da cor verde oliva fornecido pelo próprio exército, nunca tínhamos ouvido falar de Karl Marx ou sobre "lutas de classe", desta maneira, aquele episódio classificatório não significou nada pra mim. Não sabia justificar exatamente porque, mas tinha a certeza absoluta que era rica e lidava com muita naturalidade sobre esse sentimento.



Episódio II -  A baronesa da "ralé"

Durante toda minha infância e adolescência, percebia que desfrutava de um tipo de lazer que outras crianças não desfrutavam (ou achava que não). Diversas vezes, pegávamos a kombi de algum tio e íamos ao sítio do Geraldo, amigo do papai na estrada Manaus-Itacoatiara. Passávamos o final de semana nadando naquele igarapé geladinho, pegando fruta com os primos, dormindo a noite toda na rede e ouvindo histórias engraçadas do tio Benoni.

Um outro fator importante de distinção foram as viagens de avião. Poucas crianças haviam viajado de avião, eu tinha tido essa experiência por duas vezes: a primeira para Porto Velho, a segunda para Fortaleza. Isso era motivo de sobra para me achar riquíssima diante dos demais coleguinhas.

Algo que merece destaque, foram as festas de aniversário com muito docinho, bolo confeitado e a boneca Barbie. Pouquíssimas meninas tinham tão luxuoso brinquedo.

Dentre os outros distintivos, cito que do pré-escolar à quinta série, eu detinha os melhores lápis-de-cores da única escola particular do bairro e minha melhor amiga era filha do padeiro de um estabelecimento famoso da cidade, no bairro da compensa: a Wanúcia.

Eu nunca ouvi falar que tive alguma dificuldade na vida.

Sem contar que, durante anos, eu ouvia que a minha família era a mais honrada e a mais bonita das redondezas. Que no alto Juruá, onde meus avós moravam, só existia fartura: muita melancia, abacaxi, farinha, ovo de tracajá batido, chocolate feito de cacau, peixe, carne de caça e várias delícias que minha mãe contava, de dar água na boca só de lembrar! O mais divertido era ouvir as brigas entre minha mãe e tio Nonato, onde ela sempre o derrubava da canoa, ou a tia Rama que rasgou dinheiro quando foi comprar algo na taberna.

Que o meu tio Mário, ex-integrante da banda curto-circuito, era o melhor músico da cidade, pois ninguém tocava violão igual a ele ou tinha o melhor repertório, recheado de Chico da Silva, Zé ramalho e Fagner. Passava as tardes nos ensinando a tocar flauta, piano e violão, infelizmente sem sucesso nenhum na empreitada.



Que meu avó Arlindo era um herói, pois com muito trabalho e determinação, trouxe os filhos para estudar na cidade, que minha avó Ana era muito bonita, forte e generosa, que todos no bairro a amavam por nunca negar comida à ninguém. Que meu pai era o homem mais inteligente e amoroso daquelas bandas e o melhor: minha mãe era a mulher mais sábia e linda do mundo.

Sem exageros, a primeira vez que vi um concurso de miss Brasil, questionei ao meu principal interlocutor, meu pai, da seguinte maneira: Como pode existir esse concurso se a mamãe era a mulher mais bonita?

E assim vivi durante anos, naquela mini bolha de amor, beleza e prosperidade infinita.


Episódio III - Quando descobri que era "pobre"

O bairro onde meus pais moram, conhecido popularmente como "cidade das palhas", cresceu a partir da década de sessenta, época esta quando eles se mudaram para lá. Durante muitos anos, através da rádio local do Sr. Aquino, mais conhecido como "Carrapeta", foi considerado como o território mais violento e sanguinário da cidade, o que gerou uma memória social que perdura até os dias atuais.

No ensino médio, convidei uma amiga para estudar na minha casa, mas ela, com toda a delicadeza do mundo, disse que só iria se fosse escondido... seu pai havia advertido que aquele bairro era muito perigoso e que não queria que ela andasse por ali.

Naquele momento percebi que a questão territorial, ou o seu local de nascimento/moradia, determinava o estigma da pobreza, ainda que eu nunca houvesse pensado sobre o assunto.

Um outro fator importante para consolidar essa "dúvida de classe", foi ouvir de uma amiga, filha de um sério intelectual da cidade, que ela era uma pessoa simples, legal e socialista, pois estabelecia amizade com pessoas pobres como eu, fulana e sicrana. Ouvi com curiosidade, atenção e continuei tentando entender o que me deixava naquela condição. Seria "estilo de vida"? Conta bancária dos pais ou sua? Quem tá classificando todo mundo? O que determina?

Percebi também, que um outro fator que determina a distinção de alguém de maneira instantânea (e não construída), é o tão "culto" seus pais são, não necessariamente você ou as experiências pessoais de cada indivíduo.

Para você que está desesperado em não ser classificado de "pobre", não se iluda, esta classificação não é pautada apenas no quanto você acumulou no banco. Ajuda muito se você mudar de bairro.

Episódio IV - O poder de classificar 

O poder de classificar os outros em categorias limitadoras (ex: maconheiro, marginal, galeroso, pobre, puta, burro), aconteceu comigo durante meu último (e brevíssimo) trabalho de campo, em uma comunidade quilombola, eminentemente rural, às margens do rio Andirá/AM.

A anfitriã, gentilmente, me questionou se estava tudo bem com a minha hospedagem, se faltava algo, se a cama estava confortável, se a comida era suficiente, se eu estava bem acomodada de uma maneira geral. Eu, com a delicadeza de um bode, disse com toda displicência do planeta: "não se preocupe comigo querida, estou acostumada". Ao proferir essas palavras, fiquei horrorizada comigo mesma e do que estava falando. Pensei em um tom alto e feroz:

- ACOSTUMADA COM O QUE?
- O QUE EU QUIS DIZER COM ISSO?

Sorri amarelo e me calei.

Procurei dentro do meu íntimo e utilizando toda a reflexividade que me restava naquele momento, descobri com a frieza cirúrgica o que tinha feito.


Episódio V - Quando descobri que Manaus era uma cidade inóspita*

* más condições para sobreviver (...)

No ano passado, 2015, tive a feliz oportunidade de participar do casamento de uma amiga, a Lívia. Eu não a encontrava fazia mais ou menos dez anos. Ela morou em Manaus no período que seu pai havia sido transferido pra cá, e estudamos o ensino médio juntas. Isso era bastante comum naquele colégio de boinas vermelhas. Depois de alguns anos, seu pai foi transferido novamente para sua cidade de origem, mais precisamente para o sudeste  do país. Desde então, passamos a conversar por cartas, e-mails, depois  o moderno msn.

Durante a festa do seu casamento, vários amigos daquela época estavam presentes e passaram a lembrar de como foram suas vidas em Manaus na década de 90:

- Nossa, eu lembro que não tinha nada pra fazer naquela cidade, meus pais viviam entediados;
- O pior era não ter água potável, minha mãe morria de medo que pegássemos alguma doença. Tinha sempre aquelas garrafas da "santa cláudia" espalhadas pela casa;
- Tinha tanto mosquito que eu nem conseguia respirar;
- Nossa, Manaus era muito suja. E o calor? insuportável! Mudou alguma coisa?
- Índio eu nunca vi na época que tava lá, mas eles ainda existem?
- Eu nunca vi tanta gente feia na minha vida, desculpa amiga, mas é verdade;
- Mas a nossa turma era muito legal, saudades amiga <3
- Mas e vc? virou antropóloga né? o que faz mesmo?

- Critico todo mundo de uma maneira elegante, ainda é difícil pra mim, mas tô estudando.

Todos riram.

(...)

Após os relatos, fiquei pensando que eu também estava em Manaus na década de 90, junto com eles. Por que não fazia a mesma leitura sobre a cidade? O que havia acontecido comigo pra não ter percebido essa calamidade pública sob o meu nariz? Que óculos eles usaram? Quais eu usei?

*

Durante o tempo que eu passei sem escrever nesse blog, vez ou outra me pegava refletindo sobre minha postura agressiva, muitas vezes prepotente e arrogante de uma "nativa" abusada e exibida. Esclareço que o etnocentrismo toma conta dessa escrita, com a certeza de que o lugar onde se nasce não oferece autoridade plena para falar sobre ele.

Considerando que há pessoas extremamente comprometidas e críticas no que diz respeito as classificações sobre a Amazônia (e outros "lugares inóspitos") e as pessoas que vivem aqui é que:

- Natasha, só por hoje, não será xenofóbica e preconceituosa, pois entende que este poder, ou melhor, esse raio classificador, pode estar nas mãos de qualquer um, inclusive nas suas.

A volta do malandro, Chico, 1985



















3 comentários:

  1. Querida Natasha,

    No se deje contaminar por la estupidez de los tolerantes, los superdemócratas, los convincentes ciudadanos globales. Aquí donde le escribo, en Caaguazú, en esta región devastada y brutalmente arrebatada a los Guaraníes, la vida nos da lecciones de asimetría. Sí, porque cuando los menores no son etnocéntricos, sucumben ante la arrogancia multicultural de los metropolitanos. Manaos, como Caaguazú, nunca será San Pablo, ni Berlín, ni Chicago: en estas ciudades necesitan de su exotismo para contar aventuras a las amantes o entretenerse en un bar tras el tedio urbano de todos los días.

    “Malditos gringos y malditos brasileros”, decía la Tía Herminia, la anciana que me inspiró en mis pasajeras estancias en este lugar del mundo, hastiada de ver forasteros transformando los bosques de aquí en pastizales amorfos.

    Le escribí en la lengua que se habla por esta tierra, arraigado como estoy en estas fechas a esta latitud insignificante del hemisferio sur. Hace mucho que no vuelvo a Brasil, ¿está tan decadente como dicen por ahí?

    Su lector episódico,

    Mr Hide

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  2. ¡Ah! A veces usted parece una antropóloga al escribir. No reniegue de la taxonomía, ella es una de las claves del conocimiento detallado. El problema no está en clasificar, sino en adquirir los criterios inteligentes para tal propósito, y despreciar la banalidad estulta y simplista a la que el mundo de hoy nos tiene acostumbrados.

    Mr Hide again

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  3. Gostei muito de ler essas palavras, Natasha.

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