sábado, 13 de março de 2021

errante navegante

Koketit 


"Posso ser um comunicador errante", ele disse. 


Para a astrologia, o planeta vênus é o representante simbólico da nossa forma de amar. Meu ascendente é em virgem, minha vênus também. Há muitos anos atrás, um amigo perguntou sobre a vênus, eu não tinha a menor ideia. Rapidamente, fizemos um mapa astral na internet. Ele pegou um livro de muitas páginas, leu sobre o significado e recebi um olhar de consternação que nunca vou esquecer. Era quase um suplício ter a vênus justamente em virgem. Não entendi nada, mas fiquei com aquele carimbo marcado com ferro quente bem no meio do meu coração. Talvez ele não saiba, se depender de mim, nunca vai saber, mas eu fui tomada por uma tristeza tão grande e me convenci que estava destinada a nunca amar e ser amada por ninguém devido essa maldição dos astros que tinha acertado logo a mim. 


Nas últimas semanas, de maneira recorrente, perguntam se estou bem. 

Respondo com toda sinceridade do mundo: sim, estou. 

Na sequência, ouço o seguinte: como é possível? pandemia, isolamento social, lockdown, 2.152 mortos por dia, bolsonaro, pazuello, falta de leitos, colapso, falta de oxigênio

Vou explicar.

Eu acabei de chegar do holocausto em Manaus. Minha irmã, um pouco antes do oxigênio acabar nos hospitais, teve que ser operada as pressas, ela retirou o apêndice e ficou de resguardo por algumas semanas. As crianças precisam comer, os idosos também. Além disso, os vivos precisam ser consolados pelas perdas dos seus mortos e doentes recém infectados. Minha mãe faz esse papel. 

Cresci entre agricultoras, parteiras, enfermeiras de guerras, desenhistas, cozinheiras de mutirões. Sou a primogênita de três mulheres e minhas antecessoras, foram e são matriarcas. Um ponto importante é a afirmação que uma criança é responsabilidade de um grupo, de um coletivo, de uma comunidade. Nunca, apenas de um casal ou uma mulher. É humanamente impossível. Destaco isso, porque eu não seria quem sou, sem a minha tia-madrinha Ledina, tia Rama e a (tia) Pati, todas irmãs da minha mãe. É nesse imperativo, nessa busca por excelência no saber fazer, nesse caldeirão de mulheres, que torna-se pessoa, torna-se humana.

Se eu digo que não estou bem, que estou com medo, que é perigoso, que eu corro riscos, que estou deprimida, que me sinto fraca, que não tenho mais forças, que estou cansada, teria uma torcida para me acolher e proteger, não sairia de casa, não teria feito e visto metade das coisas que já fiz e vi na vida. Na verdade, teria feito, mas só eu sei o desgaste emocional que isso me causaria. Para ser uma mulher forte, nesta família, é necessário furar essa barreira de proteção inabalável. É curiosa essa contradição.  Minha avó era forte, minhas tias são fortes, minha mãe é forte, eu sou forte. Mas não somos, ou somos? o que é força? não sei. Sentir e chorar são os verbos favoritos desta família.  Destaco aqui, uma força em agir, um poder de ação, no prover, no saber-fazer, na verdade. E isso se estende, imagino eu, a uma condição da mulher, ao menos neste microcosmo que descrevo. 

O que são os meus hiatos, então? resistência a tudo isso que falei e não concordo mais? segundo os resultados dos meus vestígios arqueológicos, vulgo terapia, é uma forma de entender, contemplar o que vivo, sinto, experimento. Achei bonito, isso também sou eu.  

Seguimos.

De acordo com Silvia Federici, autora do "Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva"*, a reprodução da vida e a força de trabalho da mulher foi negligenciada pelo Estado. Em linhas bem gerais, o ponto de vista dos não assalariados - que trabalham nas cozinhas, nos campos, nas plantações, cuidadora de crianças e idosos fora de relações contratuais, cuja exploração foi naturalizada, é creditada uma inferioridade natural. 

Silvia, já adianto minhas desculpas em te citar desse jeito porco.

*acabo de lembrar que preciso devolver o livro da Mari.

Este violência-negligencia estatal pouco importa, neste caso, para as mulheres da minha família. Há um certo prestígio, hierarquia e ordenamento nestes saberes-fazeres que tecem uma sociabilidade cotidiana que eu demorei para entender. Circular nesta mini sociedade, nesta cosmologia, nesta aldeia de mulheres que foi meu lar durante toda a minha vida,  é se colocar neste fluxo de fazeres. É importante que seja à sua maneira, com uma certa distinção entre as demais, mas com a incorporação do saber anterior. Trata-se de um reconhecimento real. É necessário acolher, acatar, reverenciar, creditar o poder da bruxa que veio antes de você, se não, nada feito. 

Além disso, como bem explicou a mãe Darabi de Itabuna, meu orixá (cabeça) é Oxaguian, filho de Oxalufan. É conhecido, também, por ser o Oxalá jovem. De acordo com Pierre Verger, "é um orixá do dinamismo e movimento construtivo, da cultura material. Seu domínio são as lutas diárias por sustento, trabalho e a paz. Oxaguian incentiva a superação e o provimento. Nunca entra numa batalha para perder, sempre ganhando suas lutas." 

Dito isso, além dos astros e da bela mitologia yorubá, tenho a genética, a ancestralidade e o contexto social em que elas e eu crescemos. Posso estar falando uma grandíssima abobrinha, mas eu me sinto desta maneira. Sei também o peso que foi e é nos apresentar assim. Sim, bancamos. 

"há pessoas que vão tomar banho e ficam chorando copiosamente embaixo do chuveiro, gosto de saber de situações assim, não me sinto tão miserável", ele disse. 

A palavra "miserável" me chegou como uma bordoada. Admitir uma fragilidade, uma dor, um não saber, é permitir que o outro te veja vulnerável para que você se permita ser vulnerável também. Eu não aprendi isso em lugar nenhum. O que eu faço com as mulheres da minha vida? E agora?

Sobrou eu e o silêncio. 

Dizem que há uma beleza neste movimento. Adianto aqui que não consigo nem começar uma explicação. Qual o poder imbricado nessa delicada narrativa-diálogo? O que há em compartilhar algo que experimentamos como incerto, risco ou exposição se isso nos deixa ansiosos e com medo? Sigo curiosa.

O que faço com esta mulher da guerra que - também - sou? O fantasma da vênus em virgem me atormentou durante toda essa conversa. Fiquei ali, atônita, muda. A errante ali, era todinha eu, sem saber o que fazer com a minha espada. Aquela praga rogada pelos astros, sina dos marcados com ferro e fogo que estavam fadados a serem descobertos como almas sem coração, insensíveis, entregues ao fluxo da ação, do provimento, defesa e, caso necessário, violência. Pra piorar, tenho quatro planetas em libra, incluindo meu sol, e quatro planetas em sagitário. Em resumo, para não iniciados, significa que na mais completa decadência, eu me sinto absurdamente mais bonita, mais atraente e devidamente munida de um plano de fuga infalível e impecável. As minhas melhores viagens e fotos - risos, foram nos períodos de maior miséria humana. É um inferno delirante ou talvez meus anticorpos astrológicos para que eu não me sinta tão desgraçada assim.

Aos desavisados, poderia parecer uma mera positividade tóxica, alienação, arrogância, ou um simples coração gelado. Não é, mas tudo bem se for. Minha lua em peixes me persegue. Ouço uma música e subitamente saio do eixo, é desesperador quando tenho um prazo e ela fica ali, me espreitando feito uma ladra. Leio um poema, fico obcecada por dias. Lembro de um diálogo bonito e fico louca para registrar na agenda ou refletir até secar todas as possibilidades de combinações de palavras e significados. Falo com meu sobrinho de seis anos e fico horas chorosa de saudade. Tem dias que todas as dores e euforias do mundo estão dentro de mim.

Especialmente nos momentos de desespero, tomo um banho, bebo água, faço uma máscara de argila e planejo meu dia seguinte na agenda. É assim. 


Ao que interessa: como acolher um lindo miserável com lua em leão de fogo e vênus em câncer. Resolvo fazer um bolo ouvindo música. Eis que as resposta surge em forma de redenção e livramento:


Terra, Caetano Veloso. 

Eu nunca imaginei que existiria uma música de xaveco-homenagem para as mulheres de terra. Muito menos que elas eram passíveis de causar paixões. As de ar, sim. As de terra, não. Anos de sofrimento a fio, sem um dia de descanso e consolo foram dissipados com Terra. 

"Terra para o pé firmeza, terra para as mãos carícia"

Caetano acertou. 

Observação importante: Theodor Adorno em "as estrelas descem a terra", faz uma crítica corrosiva ao expor como o capitalismo tardio tem força nas narrativas sobre os astros. A minha cara de pau não tem limites ao juntar essa torcida organizada para fundamentar uma singela paquera de confinamento. Este célebre autor não foi mencionado no texto, pois poderia me desmoralizar pelo encantamento, talvez, indevido. Agradeço, porém, dispenso. 

Adorno, você será ignorado.  

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