segunda-feira, 28 de abril de 2014

o campo e a pedagogia

Nunca teve qualquer vocação para ser professora, ficar enfurnada numa sala de aula ensinando um bando de pirralho maluvido e respondão o be a bá e as malditas vogais, lhe dava arrepios só de pensar.

Carrossel não cumpriu o seu papel na infância, síndrome de professorinha Helena? nem pensar! só faria sentido na esfera do fetiche...

Professora Helena, Carrossel.

Acontece que ela passou a viajar, colocava na mochila uma rede, poucos livros finos e alguns cadernos. A "manaus moderna" passou a ser o seu local favorito de circulação... 

Antes de "embarcar", comprava um saco de estopa por dois reais, 6 litros de água, por sugestão dos medrosos, duas palmas de banana... ah... a banana é uma coisa linda: macia, cheia de massinha gostosa, evita de você ficar com câimbras (ótimas antes da pegação) e já vem com embalagem, nem precisa lavar! uma beleza!

Aí vai os critérios de escolha de uma pseudo viajante de barco... mal sabia ela que tudo mudaria de lugar:

Laranja? pode manchar, é muito ácida e não levou faca. 
Manga? Vai se sujar muito, manga lambuza tudo.
Goiaba? é mais saborosa que maçã, mas a primeira tá muito verde, pode prender... melhor não. Numa outra viagem penso melhor sobre as frutas. 

Fonte: goiaba gatona, campo, Japurá (2014)


A vontade que dá é de comprar um peixe e um monte de verdurinha... o problema é que não dá pra fazer no barco... e como eu vou levar esse peixe? e vai escorrer pela sacola... credo! não! muita mão de obra.

Uma outra ideia, seria adotar a prática da marília... das sopinhas ensacadas, o problema é que seria acusada de muita frescura e ninguém me respeitaria no barco. Ah, posso levar castanhas! descascadas né? 

Passado o momento frescural reflexivo sobre os critérios alimentares, subiu no barco com sua sacola recheada de frutinhas e água... ok, confesso: alguns cup noodles nojentinhos, nunca se sabe.


Depois do sufoco "atar rede", se espichou de felicidade ao conquistar seu mini território.
Daí, do alto da sua rede, passou a ler "Urupês, de Monteiro Lobato"... foi com toda sede do mundo, achando que ia encontrar um texto facinho, afinal, o cara é pai da turminha do sítio... nada a temer.

pausa.

frustração total! D-I-F-I-C-Í-L-I-M-O, travou no primeiro conto, "que merda!"exclamou. "pior que só trouxe esse para diversão..." ela disse. leu um, dois, três contos... chegava no final e tinha a sensação que não entendia... tentava lembrar do início e aquelas palavras não faziam sentido... ela foi direto no que a interessava. 

O último conto, de 1914, falava do Jeca Tatu, "foda-se", ela pensou. "vou ler esse direto", completou.

Leu, curtiu. 

Mas custou acreditar que aquele rebelde pensava realmente aquilo, suspeitou que ele estava zoando com Silvio Romero... ou com os intelectuais da época que acreditavam num Brasil doente.

"está provado que tens no sangue e nas tripas um jardim zoológico da pior espécie. é essa bicharia cruel que te faz papudo, feio, molenga, inerte. tens culpa disso? claro que não".

retiro o que disse, nunca me senti tão parecida com o jeca quanto hoje. 

*

Por não ter outro livro, vaidade, exibicionismo, orgulho, decidiu ler o resto. 
O exemplo de osmose, daquele antigo livro de ciências que misturava o café com o leite, permeava seus pensamentos... haveria de ter uma chance...

Finalmente elegeu um favorito! "boca torta"! esse conto é sensacional!!! :D

Mas no âmago do seu ser, sabia que teria de ler novamente, se possível, em um grupo de terapia, digo, de curiosos em literatura sob a tutoria de um especialista. De amadorismo já bastavam os seus palpites.

*

Entre um conto e outro, saía da rede para tomar um "ar" e observar  o rio Solimões e a beira mais de perto... passou a identificar as plantações... banana era a mais fácil, mandioca e macaxeira precisariam de um olhar mais atento... mas com um pouco de treino ficaria uma expert! açaí e milho não ficavam atrás, aquilo estava fácil demais... 

milho cozido, bolo, canjica, mingau, macaxeira cozida, bolo, pé de moleque, farinha, tapioca, banana frita, cozida, bolo, mingau, farofa, recheio de pão, pudim de açaí, sorvete, céus... em pouco tempo, Alex Atala sentiria inveja de você.  Um banquete estava montado, até o sabor você já sentia.

No meio daquelas casinhas na beira do rio, uma delas, quando tinha, sempre se destacava... uma instituição que você aprendeu a desconfiar... "escola".

E pela primeira vez na vida, ela se imaginou sendo professora.

Teria uma roça com todas as plantinhas que lhe desse na telha e que era duramente proibida na cidade: 
"suja e a raiz quebra fossa e calçada, nem pensar!", alguns diriam.

Lá ela seria livre e faria banquetes infinitos, igual na "festa de babete"...  aquele filme que todo mundo odiou.



O sonho estava ok, mas ela não fez pedagogia... e se recusaria a alfabetizar alguém com U-V-A... ah, era só adaptar pra B-U-R-I-T-I, aí sim...

Pensou melhor e descobriu que não tinha nada pra ensinar... leu Paulo Freire uma vez na vida, só porque na época, estava apaixonada por um professor de biologia anarquista. 

Pensou em vídeo aulas, poderia decorá-las... mas aquilo pareceu fajuto demais... ela fazia mestrado e não sabia dar aulas... aquilo a deprimiu.

Resolveu deitar na rede e ouvir música enquanto seus anfitriões tiravam uma soneca. Ouviu uma das suas músicas favoritas do Chico e resolveu que faria ditados!

Ditados é um clássico! Ditado é perfeito! pensou.

Decidiu que seria uma professora de ditados... depois de ler as palavras e as coisas, percebeu que poderia pintar e bordar com aquele novo ofício.


Pegou sua versão emprestada e viu a moldura do texto de Foucault cheia de rabisco, descobriu que ali morava a saudade... 

passou pelo capítulo I e sentiu orgulho ao lembrar da leitura de "las meninas" em "prática de pesquisa", seguiu direto e parou no sono antropológico... faria sentido, mas sentiu preguiça de procurar uma citação, seus olhos encheram de lágrimas ao ver aquele esforço na compreensão do texto. sua cabeça doeu, o coração suspirou e decidiu fechar o livro, acrescentou sua xerox.

De maneira geral, Michel estudou de forma ampla e criteriosa a mudança interior em "nossa cultura" do séc. XVIII ao séc. XIX através da gramática geral... é aí que ela quer atacar, através dos ditados! inventaria significados mirabolantes até não querer mais.

Medo - capacidade de enfrentar algo muito difícil
Impossível - combustível para se conseguir algo, vale pra medo também
Governo  - forma arcaica/errônea de gerir vidas
Amor - escapar de um lugar.. (essa eu colei do Mia Couto)
Embriagados - eternos sonhadores
Mutilados - pessoas que geralmente sentem muitas saudades
Meretrizes - mulheres sábias
Riso - ir no céu e voltar
(...)

Na sala de aula diria: "vamos lá queridos, hoje ditarei o que será? (flor da terra)"


flor da terra







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