quinta-feira, 24 de abril de 2014

Dissertação, diário de uma detenta


Cavei um buraco e estou dentro dele nesse exato momento.
Quanto mais eu cavo, mais fundo ele fica e é cada vez mais difícil de sair, obviamente...

Seria uma vida sem jeito?
O trabalho dissertativo seria uma prisão?

Sorte que a malandragem, ou a perspicácia de um detento, te faz perceber que por se tratar de um cárcere, o buraco não pode ser só um buraco... trata-se de um túnel meus caros... surpresos? pois é! eu também!

Pra quem necessitava de cápsulas de otimismo, aí vai uma.

Mas é o seguinte, amanhã passa o efeito do placebo, agilidade na colher que a água tá na canela.

Racionais, diário de um detento.


"Manaus, dia 24 de abril de 2014, as 02:33 da manhã
Aqui estou, mais um dia
Sob o olhar sanguinário do vigia
Você não sabe como é escrever com a cabeça na mira de uma BAN-CÁ
Metralhadora FAPEAM ou CNPq
Estraçalha bolsista que nem papel
Na muralha, em pé, mais um professor doutor
Servindo o Estado, um orientador bom
(...)
Ele sabe o que eu desejo
Sabe o que eu penso
O dia tá chuvoso. O clima tá tenso
Vários tentaram fugir, eu também quero
Mas de um a cem, a minha chance é zero
Será que o doutor ouviu minha oração?
Será que o orientador aceitou a prorrogação?
Mando um recado lá pro meu irmão:
Se tiver usando ABNT droga, tá ruim na minha mão
...
Pode crer, estudante gente fina
Tirei um dia a menos ou um dia a mais, sei lá
Tanto faz, os dias são iguais
Acendo um cigarro, e vejo o dia passar
Mato uma página pra ela não me matar
Mato o tempo pra ele não me matar
Homem é homem, mulher é mulher
Membro da banca é diferente, né?
Dá soco toda hora, tapa e beija os pés pra aliviar
Sangra até morrer no PPGAS!
Cada escrito uma lauda, um capítulo
Cada capítulo uma crítica
Cada crítica um motivo, uma história de lágrima
Sangue, vidas e glórias, abandono, mesquinharia, ódio.
sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo
Misture bem essa química
pronto: eis um novo pós-graduando
Lamentos no corredor, na sala de reunião, no computador
Ao redor do trabalho de campo, em todos os cantos
Mas eu conheço o sistema, meu irmão, hã
Aqui não tem santo
Rátátátá preciso evitar
Que um safado faça o trabalho por mim
Minha palavra de honra me protege
pra viver no país das saias floridas
Tic, tac, ainda é 02:53
O relógio da coordenação, anda com meu pescoço na mão
Ratatatá, mais um ofício vai passar
Com gente de bem, retardada, "artista"
Vendo série/filmes, satisfeita, hipócrita
Com raiva por dentro, a caminho do centro
Olhando pra cá, curiosos, é lógico
Não, não é não, não é zoológico
Minha vida não tem tanto valor
Quanto seu celular, seu computador
Hoje, tá difícil, não saiu o sol
Hoje não tem visita, não tem pegação
Alguns companheiros têm a mente mais fraca
Não suportam o tédio, arrumam babacas
Graças ao carnaval e à trilha sambista
Falta só uma semana, três dias umas horas
Tem um HD lá em cima fechado
Desde terça-feira ninguém abre pra nada
Só o cheiro de gravação e maldição
Um pesquisador se enforcou com o fio do fone e a caneta na mão
Qual que foi? Quem sabe? Não conta
...
Nada deixa um antropólogo mais doente
Que a solidão da transcrição
Aí moleque, me diz: então, cê qué o quê?
A seleção tá esperando você
Pega todos os seus artigos aprovados
Seu currículo lattes e limpa o rabo
A vida acadêmica é sem futuro
Já ouviu falar de PHd?
Que veio do Collège com diploma
Um dia no barco recreio, não ele é só mais um
comendo rango azedo com pneumonia
Aqui tem os mano da etnografia, Manaus, Belém, Benjamin Constant,
Porto Nacional, Blumenau, Viçosa, Conceição do Araguaia...
Pesquisador sangue bom tem moral na quebrada
Mas pro doutorado é só uma região e mais nada
Vários PPGAS, quantos selecionados?
Veja a nota da CAPES de cada.
Na última coleta, o fulaninho veio aí
Trouxe uns formulários :P
(...)
ESSA MÚSICA NÃO TEM FIM?

Eu quero mudar, eu quero sair,
...
De madrugada eu senti um calafrio
Não era do vento, não era do frio
Correção do texto tem quase todo dia
Tem transcrição logo mais, eu sabia
Malandragem é tudo que o orientando tem
Conseguir terminar o texto, de forma violenta
Se o computador sacanear alguém
leva pro HD e salva o resto também
Fumaça no sistema, mudou o tema?
Fudeu! foi além! tem refém, é você!
Na maioria, se deixou envolver pelo campo
Por um papo que não tinha nada a perder
Dois nativos* considerados passaram a discutir
Mas não imaginavam o que estaria por vir
Teorias, militâncias, influências
Uma maioria de grupo de pesquisa arrogante
Era a brecha que o diplomado queria
Avise o CNPq, chegou o grande dia
Depende do sim ou não de um só homem
Que prefere ser neutro pelo telefone
Ratatatá, tambaqui e champanhe
Eu fui almoçar, que se foda a minha tese!
Pesquisadores assumidos, publicações, reuniões
Quem tem mais publicação ganha medalha de prêmio!
O antropólogo é descartável no Brasil
Como modess usado ou bombril
Bolsa? Claro que o sistema não quis
Esconde o que a CAPES não diz
Ratatatá! Abobrinha jorra como água
Do ouvido, da boca e nariz
O meu orientador é doutor
Perdoe o que seu orientando diz
Dormiu de bruços na sauna da vez
Sem lençol, sem beber
Sem tomar banho, sem foder comer
Vai pegar uma escoliose na cadeira
Miopia é o de menos,
Aquele parágrafo final te sorri do inferno!
O prazo é frio e não sente pena
Só ódio e ri como a hiena
Ratatatá, você vai defender!
E vai nadar naquele rio de Alter,

Mas quem vai acreditar no meu depoimento?
Dia da defesa, diário de um detento.

* licença poética


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