segunda-feira, 27 de junho de 2016

O dia que transformou texto em papel higiênico

Fabricado pela Bipacel



Desde que entrou na Universidade, ela percebeu que havia acumulado nas costas um peso de aproximadamente 70 kg  de papel A4. Era equivalente ao peso de um mundo, talvez alguns deles.  

Durante anos, se imaginou relendo todos. Os separou em ordem alfabética, agrupou autor por autor, comprou pastas de arquivo, foi eliminando os que tinha o livro, na medida em que ia os adquirindo. Mas e as anotações compartilhadas daquela xerox?! E as aulas que anotava no próprio texto? O suor [as vezes lágrimas] que carimbava as leitura nos dias quentes [as vezes sofridos] de Manaus? E os recadinhos? Adesivos? Dedicatórias? Xavequinhos? Valor da xerox?! era informação demais pra ser jogada no lixo, ou doada pra alguma instituição. 

Ela poderia ter doado sim! Mas percebeu que as xerox's de outros colegas que fizeram o mesmo, permaneciam intocáveis, sob o véu de poeira que as cobria... parecia a sina da xerox. Ela estaria reivindicando o "papel" do livro? Não.

- Lembrou do Roberto da Matta, onde ele se recusou a autografar qualquer xerox, após a palestra proferida em Manaus. Todos riram, foi uma piada. Porque?! Porque negar legitimidade ao "papel" do nosso interlocutor mais íntimo e fiel? Ficou pensando sobre isso um tempo.

A xerox se doa, está ali pra inspirar desenhos, a própria escrita, o esboço, é lá que nascem as idéias quando você não quer escrever nada permanente em caderno algum. É o espaço da divagação. O caderno, meus caros, é um tirano! Ele significa a promessa de um texto! O caderno te coloca contra a parede e te exige um fichamento, uma resenha, um parágrafo bem escrito! Uma descrição do campo!!! 

Na xerox não, é lá que ficam as citações soltas, as fofocas, o garrancho, o desabafo, a conversa silenciosa com o autor. É lá que você xinga ele também, quando não entendeu nada ou discordou de tudo. É o espaço dos pincéis coloridos, dos grifados extensos, dos símbolos que só você entende. 

Xerox é vida... mas uma hora pesa.

Num domingo preguiçoso, ela foi organizar suas xerox's. Havia feito aquele mesmo ritual, três anos atrás, com a eterna promessa da leitura: não o fez, não o faria, jamais faria. A promessa da leitura de uma xerox [vale para qualquer objeto] encostada em algum aposento da sua casa é o reflexo que você tem sobre si mesmo, da eterna incompletude. Nunca estaremos prontos. Essa sensação é até interessante quando você trás ela pra dinâmica da vida, te coloca em movimento. 

O melhor momento para uma xerox ser lida é no exato instante que ela cai nas suas mãos. O mesmo vale para o livro. 

Aquelas cópias de textos se tornaram fantasmas para aquela garota, um acúmulo de vidas que não queria mais, de poeira, de promessas. Acumular não é o mesmo que viver ou ter experiências com o texto. Mais uma vez, quer ler? leia! Quer o texto? jogue no google e leia no PDF. Foi raro? Scanneia isso e dá a raridade pra alguém!

Se há pessoas no mundo que dormem em pé (Mauss, ano) porque você não irá aprender/acostumar a ler no PDF? Se você precisa estudar MUITO o texto, se permita ter uma xerox para pintar e bordar [ou pare de sacralizar seu livro!]  Mas lembre-se, ela é uma ferramenta, não um fim em si mesma.


Passado o texto de homenagem, vamos ao ato sangrento.

Naquele domingo de inspiração e clarividência, juntou tudo, sem dó nem piedade. Imaginou que cada pilha teria dez quilos [era mais ou menos o peso daquela roda de ferro do agachamento], multiplicou por seis. Poderia mandar pra reciclagem... era isso! Com ajuda de seu pai, colocou tudo na mala. Imaginou o corpo de alguém sequestrado... e poderia pesar uns sessenta ou setenta quilos. Na manhã de segunda feira, saiu obstinada. 

Na avenida dos franceses, parou na primeira indicação:

- Bom dia moço, o senhor compra papel para reciclagem?
- Não. O papel barateou muito e não fazemos mais isso.
- O senhor poderia me indicar outro lugar?
- Tem mas é muito longe.
- Onde?
- É muito longe moça, lá no distrito.
- Qual o nome?
- Não vale a pena pela lonjura.
- Tá bem então, bom dia e obrigada :) 

HAHAHAHAHAHAHAHAH

~ esse diálogo foi real ~


Escreveu no google quais empresas em Manaus faziam este tipo de serviço: tentou a Concorde, tentou a Rymo, nada. Até que tentou a Bipacel.

- Sim, pagamos 0,50 centavos o quilo.

Ela não acreditou! Suas xerox antigas virariam  combustível para planos dinheirinho mesmo!

Correu lá, quase fritou. O dia estava do jeito que ela gostava, céu azul [sem nenhuma nuvem]. O sol que ardia a fazia lembrar o quanto seria delicioso se ela fosse em algum flutuante das redondezas... rio geladinho no fundo, birita$, tudo conspirava, menos seu bolso.

Seguiu reto na Torquato Tapajós, não voltaria com aquele peso morto para sua casa de jeito nenhum. Era uma questão de honra, aqueles papéis a puxavam pro fundo, o significado da xerox havia sido completamente perdido, se aquilo foi vida, num passado longínquo, hoje ela sentia que tinha que passar aquele troço adiante.

A Bipacel ficava no Bairro Santa Etelvina [Santel para os íntimos]. As orientações eram claras, segue reto, dobra à direita, depois da empresa Dafra. Seguiu as orientações e entrou no Novo Israel sem querer. Durante toda a sua vida, achou que aquela entrada fosse a do Santa Etelvina. 

Passou a Philips, a Pioneer, a Coca-cola, feiras, condomínios, casa, casinha, casarões, muros, arame farpado, ESSA PROPRIEDADE É DO FULANO, poucas árvores, alguns cafés da manhã, pouco trânsito, muito caminhão. Chegaria em Itacoatiara, mas nada de Santa Etelvina. 

Dafra! Dobrou a direita, seguiu reto, sabia que era o caminho, mas parou pra perguntar em uma borracharia. 

- Oi! quanto o senhor paga no pneu?
- Depende, eu tenho que ver.
- Mas quanto mais ou menos?
- A partir de dez.
- Tá bem, obrigada. A Bipacel é por aqui?
- Sim, tá vendo aquele muro azul? 
- Não, que muro?! 
- É verde! aquele pedacinho verde lá em cima! 
- Ahhhh tô vendo!!! 
- A senhora dobra ali e segue aquele muro. Dobra a direita depois da escola.
- Tá bem, obrigada! :)

Chegou entusiasmada, nem acreditou que estava ali! 

Parou em um portão azul, perguntou se lá era lá e entrou.

O Arijelson chegou e a explicou que ela teria que subir o veículo numa balança. Depois disso, tirariam todo o material e pesariam novamente. Assim fizeram.

Ele perguntou se ela gostaria de conhecer a fábrica, ela consentiu e saíram em direção à masmorra dos papéis. Por um segundo, pensou que Lévi-Strauss, Pierre Bourdieu, Miguel Reale, Fernando Capez, Laplantine, Geertz, Malinowski, Leach dentre outros, estavam ali [citou os mortos, pra não comprometer sua relação com os vivos]. O segundo passou e ela esqueceu. Aproveitou a oportunidade e fez um versinho de despedida:

teorias vem
teorias vão
a etnografia e a experiência,
ficarão para sempre 
no seu coração 

HAHAHAHAHAHAH

riu no estômago

Logo na "entrada do fundo" estava a máquina que triturava todos os papéis que são criteriosamente selecionados antes de entrar lá. A garota ficou apavorada e tremeu dos pés a cabeça! Lembrou de todas as mortes que poderiam ser causadas por aquela máquina. Agradeceu muito o convite em "ver mais de perto", mas não se aproximaria daquele liquidificador gigante JAMAIS! Implorou pra todo mundo tomar cuidado e recebeu sorrisos :)))))))

Entrando naquele galpão gigantesco, percebeu como era apavorante e ensurdecedor uma fábrica por dentro e ficou admirada de tanta gente estar ali para a confecção do papel higiênico.

Ao ver uma panela com um líquido grosso [com uma cor belíssima] que parecia melado de cana, ficou curiosa e perguntou o que era. Arijelson explicou que era uma cola perfumada, a que gruda os rolos. Essa cola era a responsável pelo aroma do papel.

Na hora, lembrou das coceiras absurdas que as obcecadas ginecologistas [e minha mãe] falam que esse tipo de papel causa. Resolveu não falar nada para não magoar a genial [e entusiasmada] explicação  sobre a confecção do papel higiênico. Finalizamos o tour com os rolos gigantes que são cortados e embalados em máquinas igualmente gigantes. #medo 

Ao sair, Arijelson me presenteou com um pacote do principal produto deles: o top perfumado.

*

Há quem diga, que "o banheiro é onde tudo acontece, onde tem o descarrego, o nascimento, você se limpa, você se esvai, é o renascimento da fênix dia a apos dia, é a possibilidade de um novo recomeço" (Cuenca, Paulo. 2015).

Ao que tudo indica, a menina está mais leve do que nunca, mais leve que uma pluma! Nunca se sentiu tão inteira na vida! No geral, saíram setenta quilos de peso dos seus ombros, vários litros de insegurança e incompletude, ganhou um punhado de novos amigos, conhecimentos extraordinários sobre o funcionamento de uma fábrica de reciclagem de papel higiênico e uns trocados no fim do mês :) 

Naquele momento, sentiu que estava pronta para as outras que viriam... 
No fundo, não sabe bem quando será, mas tem a certeza que não serão poucas.

*

Quem se animar, segue aí o telefone: (92) 2121-1319




















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