terça-feira, 15 de novembro de 2016

O filho da confeiteira

Confeiteiras são uma espécie de estrelas do rock.

Na verdade, justiça seja feita: a cozinha nunca foi um lugar especial pra mim, até conhecer o filho da confeiteira.

- trouxe?
- não! tu só gostas de mim porque trago bolo pra ti.
- que drama! me dá logo... vai?

Vinha como quadradinho enrolado no papel alumínio. O recheio de baba de moça ficava intacto, fazendo a divisão entre os partes mais fofinhas de leite e chocolate. O grande sofrimento era a cobertura, grudava inteiro no papel e eu tinha que lamber todo pra não deixar nenhuma castanha ou creminho pra trás.

Ele tinha nojo de tudo. Enquanto eu me esbaldava no R.U. comendo barata frita e chinelão transgênico feito de resto de bicho, ele tinha ânsia de vômito com qualquer nervinho que aparecia no picadinho de "carne". Cansou de ter ódio todas as vezes que eu dizia que ia comer no R.U. pra economizar. Bufando, pegava um prato e se servia de batata cozida e farinha: só.  Era só o que o príncipe conseguiria comer. Eu me espocava de rir, óbvio.

- Diz aí uma comida que tu não gosta.
- Nada, eu gosto de tudo, como tudo. Até pedra temperada.
- Duvido.
- Tá, talvez pimentão... credo, pimentão!
- Tu precisa experimentar o pimentão recheado da minha mãe.
- Hoje?
- :P

E foi aí que eu conheci a cozinha da Artemis. A cozinha era toda revestida de cerâmica branca. Da casa inteira, era nítido que tinha sido o único cômodo reformado. Havia várias prateleiras encostadas na parede contrária à geladeira, fogão e armário, com uns 20 bolos de castanha com baba de moça, e uns cinco de chocolate.

Entrei.

A cozinha estava quentinha do forno ligado e o cheiro, que eu já sentia lá de fora, era de desmaiar de tão bom. Me senti um cachorro no galinheiro.

Eu quase morri quando descobri que não poderia comer nenhum. Estavam todos encomendados. Tinham hora e data marcada pra fazer a felicidade alheia. No centro da mesa, havia  um copo de liquidificador e um prato de carne assada, coberto com plástico filme. Mais no canto, vi um caderninho todo rabiscado com espiral de arame e uma bic enroscada nele, era lá que faziam as anotações dos pedidos.

A mesa era de madeira, meio improvisada, e junto das outras coisas, ficava um bacia cheinha de castanha picada.  Imaginei que tinham sido torradas com um pouco de açúcar, era a cobertura das belezinhas. Pensei: os bolos são bonitos porque são roots. Apesar da moda irritante, Artemis não trabalhava com pasta americana.

Olhei para o fundo da cozinha e vi duas sacas enormes, eram as castanhas frescas.

Todos usavam touca, menos eu. Sentei em um dos bancos da mesa, fiquei um pouco constrangida e prendi o cabelo discretamente com uma caneta que peguei na bolsa. Sem saber se era suficiente ou se poderia ficar ali, tentei ser simpática e perguntei se queriam ajuda. A única coisa que eu sabia, era que não sairia daquela cozinha por nada.

- Tu queres um pedaço de bolo? O pimentão vai demorar. 

*

Em um dos meus aniversários, estava um bom tempo sem falar com a minha mãe. Eu nem apareci em casa. Artemis fez um bolo redondinho pra mim, era inteiro de chocolate. Em um dos aniversários do Rodrigo, me chamou de filha e disse umas coisas bem bonitas pra minha mãe, num contexto que claramente não cabia um mini discurso. Não sei o que passou na cabeça dela, pois nunca havia mencionado da minha treta com a dona Rosa, mas desconfiei do que havia passado na cabeça da minha mãe quando ouviu a Artemis.

Olhos destreinados poderiam ter a impressão equivocada sobre ela. É de poucos amigos, enxuta nas palavras, possui um senso forte de justiça e sofre de sincericídio agudo. Tem uma devoção pelos filhos, pais e irmãos que impressiona. Parece que não vive para si, vive para o outro. Rodrigo tinha o prazer de fazê-la rir a todo instante e enchê-la de orgulho, era seu braço direito, era o Esteban de Manuela. Cozinha toda hora, cozinha como se não houvesse amanhã, e não há especialista que se sobreponha ao conhecimento que essa mulher tem sobre os alimentos. É como se arrancasse um pedacinho de si e colocasse em cada prato que faz.

Hoje me vejo uma apaixonada por confeiteiras, cozinheiras. As mais ranzinzas são as melhores, me parece que quanto maior a dor, mais saboroso o prato... que grande mistério esse.

*

No aniversário da Marília, uma das sobreviventes à mim, ela comemorou com o bolo mais famoso da cidade.

Depois dos parabéns e de todo o frisson pós discurso, esperei a sala esvaziar e fiquei arrudiando a mesa... enrolei o máximo que pude, fui no brigadeiro primeiro. Percebi que ninguém tinha tirado minha parte favorita, peguei a faca e cortei um pedacinho bem pequenininho, aquele cantinho do quadrado, o que tem mais cobertura e castanha. Senti falta do papel alumínio grudando e comi. Desceu que nem pedra na minha garganta.

*

Dia 28 de outubro fez quatro anos e eu estava aqui.
Parece que faz tanto tempo e parece que foi ontem.

Ele era louco pra conhecer Nova Iorque e levar a Bruna na Disney. Sempre achei ridículo e vivia falando que Estados Unidos é coisa de gente brega e consumista.

Aposto que ele adoraria estar perambulando por aqui, que nem eu.

Antes de viajar, fui assistir uma peça de teatro maravilhosa indicada pelo Luiz Davi, se chama "Deitar o sal". As vezes a gente esquece como o ser humano pode ser incrível, que espetáculo!

Elas estavam lá, grudadinhas. Bruna de cabelo curtinho, Artemis com toda a dor do mundo.

Respirei fundo, preparei meu melhor sorriso, meu melhor abraço.

*

Nem sei como sobrevivi, mas sobrevivi.


Um comentário:

  1. Eu estava pronta e prestes a responder, já escrevendo mentalmente inclusive, até que comecei a me debulhar.

    Rodrigo é o bolo mais doce que a Artemis já fez. E como sua mão de confeiteira maravilhosa só sabe fazer: ele é doce sem ser enjoado.

    Você me apresentou ele num carnaval, eu nem me lembro que fantasia usávamos. Mas lembro que éramos jovens e a morte é(ra) impensável em nossa vida.

    Um dia, buscando um bolo na casa da Artemis, eu dei de cara com o Rodrigo saindo da garagem e não entendi foi nada.

    Eu simplesmente não sabia que o Rodrigo-da-Xoxoxo era filho da Artemis-do-bolo-de-castanha.

    Tampouco sabia que a trajetória dele seria tão curta aqui com a gente.

    Você não sabe (mas vai saber agora) mas eu não consegui me colocar no seu lugar nem no lugar da Artemis nem por 1 minuto, não imagino a dor de vocês e por isso nunca fiz muita questão de demonstrar o meu profundo pesar com a passagem do Rodrigo.

    Uma das almas mais generosas que eu já conheci, me ensinou coisas que ele nem imagina, especialmente sobre integridade. Somos muito privilegiadas de termos provado do bolo especial de sua existência.

    Receba meu abraço apertado e a minha amizade sincera. Não sou filha de confeiteira mas cunhada de pizzaiolo se servir... Hahahahaha

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